Debruçar-se indagativamente sobre seu ofício, reafirmar o desejo de visitar nos meandros do passado principalmente os dramas cujas singularidades expõem aspectos da condição humana, articular temporalidades que conectam nossa experiência atual àquela supostamente vivida no passado não por analogias simples ou comparações anacrônicas, mas pela pulsão vital que pode ser suposta num e noutro contexto, determinar-se a buscar o papel da beleza na transubstanciação do desespero ou da esperança das situações-limite experimentadas em contextos diversos – tudo isso se revela na narrativa a seguir, levemente. Sutil e poética ela eleva a densidade do que aparentava simples, sugere a complexidade da prática e, no registro visual, expõe a ressonância nos alunos desses modos de viver o conhecimento.
Assim, passado e presente constituem os fios para que os galos venham a tecer belas manhãs no porvir.
Eis a reflexão de um educador apaixonado, prosador envolvente, pesquisador incansável. Bravo!
Pano Povo
por Rui Leon*
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
João Cabral de Melo Neto
Marc Bloch abre seu livro, “A Apologia da História”, com um diálogo entre pai e filho:
"Papai, então me explica para que serve a história." Assim um garoto, de quem gosto muito, interrogava há poucos anos um pai historiador. Sobre o livro que se vai ler, gostaria de poder dizer que é minha resposta. Pois não imagino, para um escritor, elogio mais belo do que saber falar, no mesmo tom, aos doutos e aos escolares. Mas simplicidade tão apurada é privilégio de alguns raros eleitos. Pelo menos conservarei aqui de bom grado essa pergunta como epígrafe, pergunta de uma criança cuja sede de saber eu talvez não tenha, naquele momento, conseguido satisfazer muito bem.”
Se o velho mestre reconhecera tal dificuldade, que diria eu? Posso tão somente afirmar que a história não é remédio amargo, que se toma em doses cavalares ou homeopáticas, para prevenir doenças, tampouco lanterna capaz de iluminar o futuro para grandes transformações. Bem sei que só fiz não responder a pergunta do menino, e devo advertir que não pretendo fazê-lo. Todavia, ainda que a pergunta não seja resolvida, o gancho daquela interrogação me prende a cabeça desde remotos tempos — inclusive, neste período de confinamento, me inibe a movência se tento, furtivo, escapar-lhe. E, exatamente no momento em que entrávamos em quarentena, alunas e alunos do terceiro ano, mais este professor de história, cá com seus dez dedos a bater em quarenta teclas, pulávamos dentro de uma trincheira, juntos e de uma só vez, no fundo sem fundo do segundo bimestre, via ambiente virtual de aprendizagem, para investigar os impactos da Primeira Guerra Mundial no século XX!
Entre estrondos e silêncios, víamo-nos duas vezes entrincheirados: agora, pelas paredes caiadas de memórias, sustentáculos tão concretos aos tetos, sonhos, planos e projetos, acima das nossas cabeças; outrora, nos buracos que exalavam medo e pólvora, cuja profundidade e parapeito serviam de proteção contra outros homens que ousávamos tratar por inimigos, ainda que não passassem de diabos tão aflitos e desolados como nós. E o que mais nos interessava naquele pretérito imperfeito era o drama humano das trincheiras, muito além das batalhas, dos armamentos, e dos grandes debates diplomáticos [todas são discussões importantes], pois a matéria vertente do tempo — o modo como aquelas pessoas viviam, sentiam e se transformavam dentro das valas — abalava-nos o sentido e os sentidos. Não por menos Bloch afirmara que o historiador age como o ogro da lenda, farejando carne humana.
Lemos contos e cartas, ouvimos canções, e vimos que o século XX saiu de dentro das trincheiras junto aos que sobreviveram. Sobrevivemos.
Um século que nascera como sobrevivente e, assim como os soldados que retornavam à casa, revelara-se profundamente traumatizado. De cada uma daquelas feridas contusas, emergiram sombra e luz; de um lado, monstros terríveis, tão bem apresentados no cinema expressionista; de outro, promessas de um novo mundo — os russos sonharam com ele, e Maiakovski o escrevera e declamara a plenos pulmões! Por sorte, e alguma argúcia [farejando carne humana], descobrimos que não foram poucos os gallos rojos que buscaram combater a monstruosidade com beleza, certos de que a poesia era insuportável à sanha autoritária de gallos negros.
A despeito desse tudo-tanto, continuo sem saber a que serve a história, porém, já sou capaz de afirmar que o historiador não pode ser apenas aquele que abre covas; é imprescindível que leve flores, e saiba semeá-las mesmo na aridez do tempo.
Neste sentido, um outro sentimento, que não ouso chamar de esperança, embora reconheça que não se trata de medo ou terror, acomete o meu peito, se penso nas trincheiras do agora: a intuição de que um novo mundo também possa emergir deste hoje, envolto por neblina e cerração, a partir de novos gallos rojos que, unidos, sejam capazes de tecer novas manhãs. Pano Povo!
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* Rui Leon é professor de história do Ensino Médio do Colégio São Domingos