some text
some text

Para aquecer a reflexão sobre o tema, antes do debate presencial com uma especialista, a comunidade foi nutrida com sinopses de leituras de autores que abordam o fenômeno, de autoria do diretor do CSD, Silvio Barini Pinto. 

Seguem abaixo os textos divulgados para os familiares e educadores da escola naquela oportunidade. A propósito do apelido “Cultura Digital em questão, 3ª temporada”, esses textos foram difundidos em intervalos de dois dias até a data do debate e foram chamados de “episódios”.

Cultura Digital em questão.

Episódio I da 3ª temporada

Mais uma vez, o CSD estimula em sua comunidade a reflexão sobre aspectos da chamada Cultura Digital – condição de maior relevância para pensar a sociedade atual. 

É sabido que o fenômeno que compreende a digitalização de muitos aspectos da vida inoculou mudanças tão radicais nos comportamentos quanto na maneira de operar o pensamento. Na expressão de um estudioso do assunto, a tal ponto a cultura digital condiciona o pensamento que é comum fazermos hoje em dia tão somente questões (para nós mesmos, para os outros, para o mundo ao redor) cujas respostas possam ser produzidas binariamente, no mesmo modo que as máquinas computacionais são programadas. As linguagens, com suas pluralidades e paradoxos, tenderiam a ser então todas reduzidas a algoritmos pensados sob a lógica do 0-1, correspondente ao sim ou não excludentes entre si.

No caso da reflexão que propomos, pretendemos ultrapassar esse condicionamento. Deve-se ou não iniciar crianças no uso de tablets ou celulares? A educação deve incluir os eletrônicos em suas dinâmicas. Sim ou não? A comunicação aberta pelos aplicativos de mensagens contribuem para a vida comum ou a inviabilizam? Os games produzem adictos. Sim ou não? – essas não são as chaves que utilizaremos em nossas abordagens. Queremos alavancar as reflexões para patamares mais complexos. Entre o sim e o não existem muitos talvez e depende. 

Buscamos pensar as implicações da cultura digital na produção de subjetividades, sociabilidades, psiquismos, sensibilidades estéticas, atuação política, cultivo da ética e outras tantas esferas da vida social, mas sempre para além do 0-1. 

A ideia, tão pouco, é a de condenação pura e simples da presença tecnológica em nossas vidas, mas a de tomada de consciência das mudanças introduzidas por ela para assunção de posicionamento educativo por parte das famílias e da escola – se possível em consonância. 

Dessa forma, o exercício reflexivo proporcionará bem mais um sem número de indagações do que um manual de respostas para o ‘bem agir’. 

Ao longo dos próximos 15 dias enviaremos pequenos excertos de textos conceituais, por e-mail, extraídos da leitura de autores que abordam a cultura digital, tais como Byung Chul Han, Michel Serres, Pierre Lévy e outros como preparação para um encontro com Julieta Jerusalinsky, a acontecer em 02 de outubro.

Julieta é psicanalista, professora da PUC-SP, autora dos livros Intoxicações Eletrônicas – o sujeito na era das relações virtuais (org.) e Intoxicações eletrônicas na primeira infância. Sobre esse tema, tem participado de Cafés Filosóficos organizados pela CPFL e feito palestras em colégios da capital paulistana.

Cultura Digital em questão.

Episódio II da 3ª temporada

Como anunciamos, passamos a enviar excertos de alguns autores que refletem sobre Cultura Digital , visando aquecer conceitualmente o encontro com Julieta Jerusalinsky, do dia 02 de outubro próximo. 

Para esse “episódio”, fizemos alguns recortes do livro Polegarzinha, de Michel Serres, no qual o autor fala sobre aspectos de uma geração que já nasceu sob o signo da Cultura Digital:

“Essas crianças, então, habitam o virtual. As ciências cognitivas mostram que o uso da internet, a leitura ou a escrita de mensagens com o polegar, a consulta à Wikipédia ou a o Facebook não ativam os mesmos neurônios nem as mesmas zonas corticais que o uso do livro, do quadro-negro ou do caderno. Essas crianças podem manipular várias informações ao mesmo tempo. Não conhecem, não integralizam nem sintetizam da mesma forma que nós, seus antepassados. 

Não têm mais a mesma cabeça.

Por celular, têm acesso a todas as pessoas; por GPS, a todos os lugares; pela internet, a todo o saber: circulam, então, por um espaço topológico de aproximações, enquanto nós vivíamos em um espaço métrico, referido por distâncias.

Não habitam mais o mesmo espaço.

Sem que nos déssemos conta, um novo ser humano nasceu, no curto espaço de tempo que nos separa dos anos 1970.

Eles não têm mais o mesmo corpo, a mesma expectativa de vida, não se comunicam mais da mesma maneira, não percebem mais o mesmo mundo, não vivem mais na mesma natureza, não habitam mais o mesmo espaço.

[...]

Não tendo mais a mesma cabeça que os pais, é de outra forma que conhecem.

É de outra forma que escrevem. [...]

Eles não falam mais a mesma língua. [...]

Essa imensa diferença, que afeta a maioria das línguas, parcialmente se deve à ruptura entre as profissões de outrora e as de hoje. A Polegarzinha e seu companheiro não se dirigirão mais aos mesmos trabalhos. 

A língua mudou, o trabalho se transformou. ”

A considerar o que o autor expõe, haveria nas expectativas de nós adultos sobre crianças e adolescentes uma sintonização com essas alterações tão significativas? Estaria a instituição escolar ajustada a essas mudanças tão drásticas? Nós mesmos, os adultos, não somos um pouco “polegarzinhas”? Se sim, quais níveis de consciência temos sobre as transformações que nos afetam, a ponto de Michel Serres dizer que “um novo ser humano nasceu”?

Pronto, temos aí alguns pontos de partida para meditar, primeiro no domínio privado (ainda existe essa esfera?) e posteriormente em nossos encontros com a Comunidade (dizem que essa é uma esfera física ou virtual que para persistir depende de investimento coletivo nos princípios adotados em comum. Temos isso?). 

Bom aquecimento reflexivo!

Cultura digital em questão.

Episódio III da 3ª temporada

Mais uma pílula para não dormir.

As transformações humanas, achamos, se fazem em torno de coisas duras (hardware): pedra talhada ou polida, idade do bronze, revolução industrial. Damos menor atenção aos sinais suaves do que às máquinas tangíveis duras e práticas. Entretanto, o duro mostra sua eficácia sobre as matérias do mundo; o suave (software), sobre as instituições humanas, diz Michel Serres. 

O autor faz com isso uma distinção entre técnica e tecnologia para afirmar como a invenção da escrita, uma das tecnologias da inteligência (Pierre Lévy), introduziu um modelo referencial de estruturação de maneira muito sutil (soft) e importante: o formato da página em que se desenvolve a escrita rende homenagem ao pagus – terrenos quadrangulares sulcados pela charrua para plantações.  Dele deriva a página dos livros, deles derivam as linhas dos cadernos dos estudantes que deveriam se assemelhar aos livros, dos cadernos assim formatados derivam a maneira de montagem de operações aritméticas na escola e da paragrafação da escrita, desse mesmo modelo multimilenar derivam ainda os traçados urbanos, as malhas que dispõem os prédios de um campus, as organizações das cadeiras nas salas de aulas, auditórios, igrejas, o currículo de uma instituição de ensino, a segmentação dos alunos e do conhecimento a ser aprendido progressivamente. Enfim, os sistemas de classificação do conhecimento e sua distribuição por áreas específicas e herméticas. Uma página não tem relação com a outra, a não ser linearmente.

Com a tecnologia informática (nova tecnologia da inteligência) a tela tornou-se um novo referencial soft. Ela não exclui o formato página, mas introduz uma possibilidade de deslizamento entre páginas que muda tudo. O acesso dessa forma estabelece uma ubiquidade do frequentador das telas. Várias telas podem ser acessadas concomitantemente, uma remete à outra, e assim sucessivamente. A remissão não obedece às classificações até então hegemônicas. A vizinhança entre os assuntos atende principalmente à demanda do consulente e não às lógicas introduzidas pelo pagus original. “Agora, distribuído por todo lugar, o saber se espalha em um espaço homogêneo descentrado, de movimentação livre”. Movimentação do interesse, do conhecimento e dos corpos que não se rendem ao enfileiramento estático.

Nessa altura, Serres recorre a um episódio que vale uma metáfora do que nos passa: Boucicaut era o nome do criador dos magazines de departamento na França. Nas lojas Bon Marché, ele mantinha classificados os itens a serem vendidos em seções muito bem organizadas. “Cada pacote bem tranquilo no seu lugar, classificado, ordenado como alunos nas fileiras ou como legionários romanos no acampamento”. No conjunto, separado nas seções e andares, a loja continha tudo que a clientela esperava encontrar, de botões a perfumes, de lingeries a trajes de gala. Tudo ia muito bem, até que Boucicaut descobriu que as vendas estagnaram. Empreendedor de boa intuição, resolveu desfazer a arrumação racional e transformar os corredores em labirintos e a disposição dos itens em aparente caos. Na verdade, começou a estabelecer relações entre os itens segundo possibilidades de usos. Essa é a concepção que muitas vezes encontramos nos supermercados contemporâneos. 

E não é que os sistemas de busca computacionais se apoiam nessa estruturação? Só que a elevam à enésima potência. Indexadores nos colocam à disposição muitas possibilidades de relações. Algumas inesperadas, outras completamente estapafúrdias, aparentemente, e o trabalho do sujeito por detrás da busca é testar a consistência, para o seu contexto singular, dessas relações ofertadas. 

E a educação? Continua sendo feita em suas bases comuns? Pagus no sentido arcaico continua a ser o referencial dessas bases? 

“ A desordem tem razões que a própria razão desconhece. Prática e rápida, a ordem acaba, frequentemente, aprisionando. Favorece o movimento, mas no fim, o congela. Indispensável para a ação, a checklist pode esterilizar a descoberta criativa. A desordem, pelo contrário, areja, como em um aparelho que apresenta folga. E essa folga possibilita a invenção [...].” 

A intuição serendipitina – nome para as descobertas criativas feitas aparentemente ao acaso – é atrofiada sem essa fresta, folga ou arejamento. Será como um vagalume sem luminescência.

O que se espera da educação na era digital? Formação original, criativa, inventiva? Pragmatismo que promove aceitação acrítica de conteúdos estanques e atuações igualmente apartadas das suas múltiplas implicações seriam ainda sustentáveis?

Podemos conversar sobre isso também nos encontros de reflexão sobre a Cultura Digital. 

Cultura Digital em Questão

Episódio IV da 3ª temporada

A cibercultura poderia dar origem a uma ágora virtual que viesse a dinamizar as formas de participação democrática? Utopia ingênua?

Quem reflete sobre essa temática é Pierre Lévy, nas obras Tecnologias da Inteligência, Inteligência Coletiva e Cibercultura. Considera que grupos constituídos por afinidades de interesse podem se autorregular no intercâmbio de ideias, argumentos, projetos, iniciativas, especialidades e recursos com o objetivo de produzir agenciamentos rápidos e de baixo custo, na tentativa de solucionar questões locais sem se submeterem “unilateralmente aos critérios, às necessidades e às estratégias de centros geopolíticos e geoeconômicos dominantes”.

Práticas democráticas moleculares que não requerem representação política podem, então, surgir como resultado de “iniciativas e dinâmicas regionais que sejam ao mesmo tempo endógenas e abertas para o mundo”(Lévy, Cibercultura).

Compreende assim que processos moleculares não dependem, para existir, da substituição de estruturas macroscópicas. Mas também não têm suas existências garantidas, senão pelo desejo e empenho dos atores envolvidos: “[o Espaço do saber] já está presente, mas dissimulado, disperso, travestido, mesclado, produzindo rizomas aqui e ali. Emerge por meio de manchas, em pontilhado, em filigrana, cintila sem ter ainda constituído sua autonomia, sua irreversibilidade. 

Dessa forma, ele também pondera: “A cristalização desse livre espaço do saber, ponto de não-retorno, pode ser que jamais ocorra” (Lévy, A Inteligência Coletiva, p.120).  

Pois bem, Lévy escrevia na década de 90 do século passado. A internet não contava ainda com a velocidade atual, com os sistemas de busca na forma sofisticada que temos hoje, engatinhava a tecnologia que veio a permitir o acesso à rede pelos celulares, não havia Orkut, Facebook, menos ainda os aplicativos Telegran ou WhatsApp.

Cabe-nos, portanto, uma reflexão atualizada sobre se essa potencialidade identificada pelo filósofo frutificou. A formação de comunidades virtuais intensificou a vida democrática?  Conseguimos atuar mais diretamente em causas locais, assegurando respeito à diversidade? A partir de uma suposta prática molecular de comunicação a vida social ganhou mais equilíbrio? Que tal um balanço da utilização do Facebook e do WhatsApp a partir dos desígnios democráticos de Lévy?

Cultura Digital em Questão

Episódio V da 3ª temporada

Byung Chul Han, nascido na Coreia do Sul, doutorou-se em filosofia e teologia na Alemanha, onde leciona (Universidade de Berlim). Sua reflexão sobre a Cultura Digital está concentrada no livro No Enxame, mas se estende sobre boa parte de sua produção bibliográfica (Sociedade do Cansaço, A Salvação do Belo e outros). 

Para ele, as transformações introduzidas pela cibercultura colocam a sociedade contemporânea em condição patológica, para não dizer terminal. O fato de que a virtualização da vida coloca (potencialmente) todos em contato com todos o tempo todo faz eliminar o distanciamento, condição para a reflexão, segundo o autor. Disso resultariam muitos desdobramentos. Dois deles são tratados em sua obra como desestruturantes da vida social e política como a concebemos. São eles a rarefação do respeito e a desintegração da representação. Nesse episódio trataremos tão somente do primeiro.

Sobre a questão do respeito, ele nos lembra que a expressão já traz em sua etimologia (re-espectare)a ideia de olhar de volta, atitude que supõe o afastamento, fundamental para a consideração pelo outro nas relações. Na falta da distância, apenas o espectare imperaria, induzindo ao voyeurismo; consumir pelo olhar e satisfazer-se com o consumo visual alheio seria a condição característica de uma sociedade do espetáculo que devora imagens, mesmo quando vazias de consistência.

Segundo Byung, “uma sociedade sem respeito, sem o pathos da distância, leva à sociedade do escândalo”. Isso nos fala de algo que não se reduz às relações pessoais mais restritas, mas a um comportamento coletivo que tem como consequência o declínio da esfera pública. Em lugar da esfera pública, exatamente, a exposição do privado dominaria como vontade de espetacularização do eu. “A comunicação digital fornece essa exposição pornográfica da intimidade e da esfera privada”. Disputa-se a postagem mais impactante, mais escatológica, talvez.

O privado se oferece como público. A indiscrição se torna regra. E, no fim, uma vez que todos auto-espetacularizam suas intimidades, voltamos a contragosto ao anonimato: pela desimportância do que comunicamos expomos nossa insignificância. Logo, desimportantes somos todos ao jogar esse jogo. Nada mais convidativo ao desrespeito do que o anonimato. 

A autoria, a autorreferência na dinâmica digital não se sustenta. Ela dura o tempo de um passar de dedos pela tela. Por isso, a atitude autorreferente para produzir o efeito desejado precisa de reiteração. É nisso que todos apostam. Efeitos desse comportamento replicado são o de produzir o que o autor denomina de “shitstorm”. Diferentemente da escrita analógica em que ao redigir colocamo-nos em situação de possibilidade de afastamento dos impulsos mais exaltados, a mídia digital viabilizaria a descarga instantânea de afetos em cadeia.

Como foi dito, a reiteração movida por essa vontade de poder objetivada na produção de shitstormleva ao que o autor chama de formação de ondas de indignação.

Respeito? Consideração? Atitude consequente? Proposição construtiva? Elegância? Cortesia?  Nada disso não dá likes. O maior volume de curtidas corresponde ao sensacionalismo, à desqualificação, ao desdém com os valores que sustentaram a vida social por séculos. Tudo marinado na mais ácida bílis. 

Indignar-se tem a ver com a criticidade e a crítica tem por objetivo colocar em crise uma certa situação, postura, forma de estar no mundo. Assumir essa condição sem sua contrapartida que seria a responsabilidade por gerir a crise inaugurada com a indignação, ou seja a capacidade de responder pela atitude crítica, responsabilizar-se por ela, corresponderia a um desprezo pela esfera pública, onde o viver juntos pode se desenvolver.

Caminharíamos para o fim da vida em comunidade? Aboliríamos a arte de gerar e gerir a vida social que é a política? Ops! Disso trataremos no próximo episódio. 

A formação de ondas de indignação teria a ver com a insaciável vontade de escândalo pela qual seus autores surfariam sem se molhar. Revelariam a substituição do zelo pela sociedade pelo zelo por si mesmo. Ilusório, por suposto! A autoria de uma onda de indignação tem como expectativa um reconhecimento pessoal que não se efetivará a não ser como likes voláteis e impessoais. Mesmo os compartilhamentos da mensagem indignada farão com que a autoria se dissolva. Como sua autoria se esvanece, seria sempre preciso repetir a ação.

Se seu efeito fosse pretensamente político, faltaria às ondas de indignação consistência, duração e propósito construtivo. Sem isso elas não geram futuro. Apenas destruição. 

Ondas de indignação podem sim, numa sociedade que cultua o liso, a superfície, a imagem em detrimento de conteúdo, destruir por acúmulo de opiniões – ausência de argumentos e consistência – a confiança em pessoas e instituições e a instalação da guerra de todos contra todos... De alguma maneira, todos somos vítimas prováveis desse tipo de ataque. O chamado bullyng é somente uma pequena amostra pueril do que tais ondas são capazes.

O pensamento desse autor não guarda relativizações para a cultura digital. A análise das relações sociais sob a cibercultura promovida em sua obra não aponta para positividades. A questão que propomos para comunidade do CSD refletir é se, de fato, seria a tecnologia digital a promotora imperiosa desse tipo de comportamento. Conseguiríamos ainda, apesar da suposta indução de atitudes pelo emprego de tal tecnologia da comunicação, pelo cultivo do exercício ético, conter coletivamente o impulso à espetacularização do eu, à superficialidade da comunicação, às ondas de indignação e tudo mais de nocivo para as relações sociais? Talvez seja apenas o que nos resta!

Cultura Digital em Questão

Último Episódio (3ª temporada)

Ciber Mama, ciber Papa – esse era o título (ou quase isso) de uma reportagem do diário Le Monde, em tempos idos. A matéria abordava a utilização da rede digital – que ainda engatinhava – por idosos. Trazia a revelação de que muitos deles passaram a se comunicar utilizando uma identidade diferente da sua original e conseguiram, com essa estratégia, furar o preconceito social com velhos. Entravam em chatse se relacionavam com supostos adolescentes, supostos jovens (ninguém poderia garantir que também eles não se valessem de identidades alternativas) e podiam colocar seu acervo de experiências e sabedorias a serviço das trocas realizadas na provisória “comunidade virtual de bate-papos”. 

A reportagem produzia dupla face de percepções: de um lado, evidenciava a discriminação a que os velhos são sujeitados socialmente, com seus ricos repertórios desprezados. De outro, apresentava a rede como universo em que a criação de identidades pode se multiplicar ao infinito. Em casos como o relatado, atuando em favor de uma boa causa...

Entretanto, pensemos nessa situação elevada exponencial e randomicamente em 2019. Todos podem exercitar um sem número de identidades. Você sabe com quem está falando? – a velha expressão que reivindicava o reconhecimento de certa autoridade de um enunciador pretensioso, hoje, virtualmente, não é mais do que a expressão de uma dúvida metódica, caminho para não atingir qualquer tipo de certeza ou “verdade”. Não, não sabemos exatamente com quem estamos falando. E assim mesmo, nos expomos como nunca para tantos incógnitos.

Mas não é enriquecedora a possiblidade de multiplicar-se identitariamente? Fazê-lo não seria antídoto para não se deixar aprisionar por nenhuma identidade fixa e inamovível? A resposta pode ser afirmativa se também pensarmos que a cada identidade investida o sujeito assuma todo o fardo dessa investidura, ou seja, as benesses e as negatividades a ela inerentes. Poderia dizer: responsabilizar-se por seus deslocamentos.

Caso contrário, a potência da multiplicação resulta apenas e tão somente na chave paradoxal em que poder ser tudo corresponde a nada! De novo, como abordamos no episódio anterior, essa experiência pode nos lançar na vala do anonimato hiperativo. 

Outra ponta desse novelo: o usuário da rede digital é levado a ser pródigo na sublimação de negatividades. Entenda-se negatividade como tudo o que não tem o papel confirmador do eu, aqui e agora.  Ao deparar-se com adversidades, impedimentos, interdição, tenderia simplesmente a mudar de página, de identidade, de interesse. Assim, poderia navegar para outros mares mais tranquilos trocando a bandeira da embarcação. No limite, poderia desligar-se – sair do grupo, bloquear desafetos, abandonar a “comunidade”.

Se tratarmos da adesão das crianças, adolescentes e adultos aos games (e não só daqueles que operam com realidade aumentada) pelo mesmo caminho adotado na reflexão até aqui, talvez o caldo entorne ainda mais. Não atingir as pontuações máximas no jogo eletrônico nada tem a ver com a negatividade, tal qual é possível entendê-la em nosso exercício de pensamento. Tal situação é apenas motivo para o recomeço da aventura. De novo e de novo, como a lógica infantil que solicita que o prazer da brincadeira se repita infinitamente.

Negatividades estão em correspondência com a condição benfazeja de distanciamento de si e dos outros. Quem enclausura-se em si mesmo abdica da negação, por princípio. Na rede, contabilizamos “amigos”, “seguidores”. Acumulamos likes. Fica apenas faltando a negatividade que nos expõe criticamente, que nos apresenta o espelho invertido, que nos faz desejar o aprimoramento do que somos. Esse é o papel da alteridade, do outro que nos coloca em cotejamento com o que vínhamos sendo até o momento. “O espírito desperta em vista do outro. A negatividade do outro o mantém vivo. Quem se refere apenas a si mesmo, quem persiste em si mesmo é sem espírito. [...] Sem dor, sem negatividade do outro, no excesso da positividade, nenhuma experiência é possível”, diz Byung Chul Han. 

Para além desse efeito, ao anonimato das tantas identidades sem consistência (geleia geral, pode-se dizer) é atribuída também a reação contraditória do impulso compensador que faz buscar politicamente afirmações identitárias a partir de um único pertencimento; fixas e excludentes, chauvinismos de toda espécie podem acabar estimulados.

Sem espanto: essa pode ser a contradição quase esquizofrênica de viajar na maionese das múltiplas identidades virtuais e ao mesmo tempo postar-se na vida “analógica” como enraizado exclusivamente em um determinado pertencimento. Nem uma coisa nem outra contribuiriam para a vida democrática. 

Quem representaria o anônimo hiperativo inflacionado de identidades? Dito de outra forma: ele sentiria necessidade de representação? Esse prepotente solitário na multidão não se sentiria suficientemente autônomo para representar-se a si mesmo? O alcance da mídia digital não o colocaria num ilusório protagonismo autossuficiente em tempo integral? Afinal, ele poderia emitir opinião sobre tudo para todos. Ou ao menos para os demais habitantes da ilha que ele imagina habitar e que lhe bastaria. Pode julgar tudo e todos sem travas morais, éticas e achar que seus seguidores comporiam base suficiente para mobilizar a realidade. Representação política? Para quê? A vida social, assim, seria projetada como realidade virtual e de maneira amesquinhada. 

Ressalve-se, entretanto, aquilo que Pierre Lévy foi convocado a dizer no episódio IV dessa temporada: sujeitos bem constituídos, implicados numa localidade determinada, podem fazer valer a democracia participativa e solucionar questões pontuais a partir da utilização da rede digital sem recorrer às instâncias representativas, meândricas e morosas. Nesse caso, o princípio de realidade continuaria lastreando o horizonte dos usuários.

Pela vertente chauvinista, a ameaça à democracia é bem mais óbvia. Afinal, o outro, o alheio, o que não partilha comigo a identidade inflexível nada teria a dizer sobre mim. Logo, posso dedicar-lhe o desprezo. Se sua existência, sua diferença me ameaça abstrata e iminentemente e não consigo no universo não virtual bloqueá-lo, virar a página e fazê-lo desaparecer, o defeito estaria na realidade. 

O recurso político, nesse caso, provavelmente possa ser acionado para eliminá-lo. E há na política, sabemos, personagens de prontidão dispostos a assumir esse roteiro. E pior: de todos os lados – somente a lógica binária redutora faz crer que seriam apenas dois os polos em disputa na rinha política.

Pé no chão: tal cenário de distopia é tão somente um exercício de olhar um tanto enviesado para a cultura digital. Refletir radicalmente é esticar o pensamento até seus limites, no máximo da resistência do material que a realidade e as projeções nos permitem na circunstância. É suposto que o internauta esboçado nos parágrafos acima não exista de fato. É possível que estejamos deixando de considerar algum novo paradigma de estruturação social ou até mesmo de reconfiguração da humanidade. Pode ser que exista bem-aventurança na virada de alguma esquina que ainda não percorremos. 

Assumimos: expomos os limites de nossa capacidade de investigar, ler, analisar, problematizar; nossa reflexão não é mais que provocação para que venham à tona aspectos que não fomos capazes de pressentir ou que não validamos de imediato. Precisamos da negatividade alheia para avançar. Essa é uma vantagem, acreditamos, do encontro presencial sobre o virtual.

Que as conversas em nossa comunidade educativa sobre o fenômeno da Cultura Digital sejam produtivas. 

Bons encontros!

Silvio Barini Pinto