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Dor de cotovelo

“Eu gostei tanto, tanto, quando me contaram
que lhe encontraram chorando e bebendo, na mesa de um bar;
e que, quando os amigos do peito por mim perguntaram,
um soluço cortou sua voz, não lhe deixou falar.”

[“Vingança”, de Lupicínio Rodrigues]

“O ciúme dói nos cotovelos,
na raiz dos cabelos,
gela a sola dos pés,
faz os músculos ficarem moles,
e o estômago, vão e sem fome.”

[“Dor de cotovelo”, de Caetano Veloso]

Se o ciúme é universal e atemporal, a dor de cotovelo é artifício & advento da língua portuguesa, e nasceu com um samba, numa mesa de botequim.

A respeito da primeira conjectura, creia-me, a literatura nos assegura o sofrimento do ciumento na escuridão incoerente das eras, da tragédia grega, através de figuras femininas emblemáticas como Medéia, às cantigas de amor, de amigo, de escárnio e de maldizer, que circunscrevem o ciúme como traço de vilania, avesso ao amor cortês; do teatro medieval e renascentista & da comédia clássica, quando o ciumento se torna figura cômica, desprezível e patética [daí uma pista para a ambiguidade etimológica de “paixão”, páthos e passion], aos romances da segunda metade do século XIX, categorizados formalmente - e, ironicamente, neste caso - como realistas. O ciúme, “fruto mordido da imaginação” ou “micróbio da realidade”, dói desde sempre, é verossímile. Mas onde dói?, eis a questão.

A “dor de cotovelo”, expressão maior do ciúme no universo popular, foi inventada pelo gênio indomável de Lupicínio Rodrigues, o compositor com “nervos de aço”, conselheiro mais sábio - e por que não dizer mais safo? - “desses moços, pobres moços”, e “quem há de dizer” o contrário? Tudo indica que nasceu com o samba “Vingança”, de sua autoria, gravado pela primeira vez em 1951, por ninguém mais, ninguém menos do que a Rainha do Rádio, Linda Batista.

Um bar, uma mesa que, a despeito de outras cadeiras, está ocupada por um diabo mais sozinho do que a própria solidão, algumas garrafas, e a lâmina fria de uma sentença: “você há de rolar como as pedras/ que rolam na estrada/ sem ter nunca um cantinho de seu/ pra poder descansar”. Eis o samba... Eis a cena... E a dor de cotovelo fica por conta dos antebraços acomodados à mesa, enquanto se chora o choro de todas as tais eras e seus decursos literários, em uma única noite, fria e escura como a alma do ciumento. “Ai, de mim! Ai, de mim!”, grita agora o velho Abu de outrora, ao pé do meu ouvido, e eu só consigo pensar na primeira pessoa do plural, “ai, de nós!”.

Ora veja, graças a essa interjeição, retomo algum brio, e busco cá comigo um fio de meada possível para esta apresentação que se pretendia curta e já se alonga deveras, tateando os nós de outras tramas literárias.

No primeiro bimestre deste ano, os alunos do 1º ano do Ensino Médio e eu lemos o romance “Leite Derramado” (2009), de Chico Buarque. Ousamos adentrar o labirinto de Eulálio, narrador-protagonista, idoso e moribundo, cuja memória mais parece uma barafunda, um pandemônio ou, em suas palavras, “uma vasta ferida”; e o que verte de suas lembranças, narradas a esmo para quem quer que seja, serve de novelo ao leitor desorientado: a dor de um grande amor, Matilde.

Diante desta condição, dobramos a esquina do século, à procura de companhia para sujeito tão desgraçado, e nos deparamos com “Dom Casmurro” (1899), de Machado de Assis; dentro dele, jazia Bento Santiago, outro diabo afogado na tormenta do amor, mais precisamente nos supostos “olhos de ressaca” de uma mulher chamada Capitolina, ou Capitu, para os mais íntimos.

Com a ajuda dos alunos, leitores tão solidários, Eulálio e Bento deram as mãos, e se puseram a falar de ciúme, metidos em si mesmos, com uma casmurrice que até parecia hereditária.

... E nós ouvimos, porque a escuta se fez leitura, e vice-versa. E nós sentimos, porque a carne se transmutou em palavra, e vice-versa. E nós escrevemos, ensaiando o ciúme, o sentido, e a desconfiança, mais conhecida como crítica literária.

Desta experiência, ofereço a você, que chegou até aqui, duas produções. Os ensaios de Lucas Guido/ 1ºA e de Julia Moura/ 1ºB. Ambos são brilhantes, e contribuem com algo de fundamental no exercício crítico-teórico-sensível: uma análise literária bem formulada é como uma candeia; dá a ver os cômodos e cantos escuros de uma obra, nunca vistos dantes porque, até então, sequer existiam.

... Se o ciúme era escuro, acho que acendemos a luz. Se era dor de cotovelo, acho que encontramos o cotovelo da dor.

Tato Sanches.

Colégio São Domingos
Nome: Julia Giovannetti Moura – Número: 17 – Série: 1B – Data: 23/03/2020

Trabalho de literatura

Casmurrice hereditária

Dom Casmurro, um clássico machadiano, conta a história de Bento Santiago, um homem amargurado por suas lembranças incertas, atormentado pela dúvida de uma traição sofrida. Com a velhice chegando e a solidão vivida, sente necessidade de escrever um relato sobre suas desconfianças e ruínas pessoais, resgatando o passado através de sensações revivenciadas no presente. Narrado em primeira pessoa, o texto induz o leitor a acreditar cegamente no que é confidenciado, página a páginaCapitu, sua esposa, sempre é descrita pelo narrador-protagonista como uma mulher não confiável e traiçoeira. É desenhada com “olhos de cigana obliqua e dissimulada’’, caracterização formulada por José Dias, grande amigo da família e tutor de Bentinho. Foi ele quem o levou para estudar direito (o que justifica o formato judiciário da obra), livrando o garoto do destino clerical, determinado pela promessa feita por sua mãe, caso o filho vingasse.

Na infância, Capitu transparecia amizade, algo inocente. Já na adolescência, sonhava com o protagonista, escrevia seus nomes nos muros, tendo outras intenções. Bento não se atentava a tais insinuações, demorando a ter o impulso de vê-la com outros olhos. Quando começou a correspondê-la, foi levado para o seminário, onde conheceu Escobar.

O narrador, desde que conhecera o amigo, desenvolveu grande apreço por sua figura. Tal encontro foi relatado da seguinte maneira:

“Escobar veio abrindo a alma toda, desde a porta da rua até o fundo do quintal. A alma da gente, como sabes, é uma casa assim disposta, não raro com janelas para todos os lados, muita luz e ar puro.’’ (Assis, 2016, p. 86)

Por este trecho, pode-se pensar sobre uma possível atração pelo companheiro. É inegável a marcante presença do afeto exposto, direcionado unicamente ao seminarista, no capítulo “Um seminarista’’:

“Eu ainda não era casmurro, nem Dom Casmurro; o receio é que me tolhia a franqueza, mas como as portas não tinham chaves nem fechaduras, bastava empurrá-las, e Escobar empurrou-as e entrou.’’ (Assis, 2016, p. 87)

Percebe-se que, diferente do que Capitu representava ao protagonista, Escobar aparecera como um tsunami, invadindo a alma de Bentinho. Não foi algo que ganhou forma tardiamente, emoldurando-se aos poucos, com a influência de terceiros ou interferências manipuladoras.

Tempos depois, após casar-se com sua vizinha da infância, Bentinho passa a ter suspeitas de um possível relacionamento entre a mulher e o amigo. No velório de Escobar, interpreta as lágrimas de Capitu como um indício de sua infidelidade. Então, montando o quebra-cabeça dos acontecimentos anteriores, cria uma narrativa cujo eixo é a suposta traição da esposa com o melhor amigo. E assegura ao leitor que Ezequiel, seu filho com Capitu, seria fruto deste adultério, apontando diversas semelhanças entre o menino e Escobar. É possível analisar tal suspeita como uma das várias alucinações do narrador, enredadas à certa obsessão pelo amigo, chegando ao estágio de ver seu rosto na feição do próprio filho.

E, aqui, vale um preâmbulo acerca do sentimento posto em questão neste ensaio: o ciúme. Segundo a psicanálise, trata-se de um afeto clivado em, pelo menos, três fácies: vazio, projeção, e delírio. Este último, em suma, se dá quando um homem ama e/ou se fantasia com outro homem, ou quando uma mulher ama e/ou se fantasia com outra mulher, mas não admitem.

Posto isso, há que se considerar a hipótese de que o ciúme como delírio se aplique ao triângulo amoroso vivenciado pelos personagens. Esse ciúme descontrolado, direcionado à esposa, não seria destinado a Capitu, e sim ao melhor amigo. Segundo essa perspectiva, Dom Casmurro não sentiria a cólera, a dor de ser traído por Capitu, e sim por Escobar, embora não confessasse tal sentimento. Os impulsos agressivos e raivosos destinados a mulher só existiriam porque ela seria a curva no caminho de sua reta para Escobar. Capitu seria a amante de Escobar, e não o contrário. O homem é que seria o objeto de desejo, não a mulher. Como o próprio nome do ciúme sugere, é algo delirante. Esse amor reprimido, incrustado na casa de sua alma, seria um dos motivos que o levaram à loucura, depois da morte do parceiro, deixando-o com um ponto de interrogação, sem credibilidade, incerto.

Assim como Dom Casmurro, o romance Leite Derramado, de Chico Buarque, também apresenta uma narração em primeira pessoa, de um homem idoso, contando sua história, pautando-se pelos descaminhos de sua memória.

Leite Derramado data a história de Eulálio Montenegro D’Assumpção, um homem centenário, que fora internado à força num hospital, onde passa seus dias descrevendo sua vida para as enfermeiras. De origem nobre, seu nome parece evocar longeva ascendência, com o avô envolvido no tráfico de escravos por via de navios negreiros; e o pai, deputado nos tempos do início da república. E, por conta destes ares de fidalgo [que, em bom português, significa “filho de algo/ alguém”], Eulálio ainda acredita que seu nome lhe garante o status de tempos remotos, e age com certa superioridade, sem ser levado a sério, o que lhe causa mau-humor, rabugice, e fornece um toque de comicidade às histórias.

Ainda jovem, se apaixonou por Matilde, trocando olhares na igreja. Era a única filha negra entre as irmãs. Não havia terminado o ginásio, foi mãe aos dezesseis anos, e tinha uma educação inferior, aos olhos de Eulálio. Ainda assim, possuía extenso conhecimento sobre a língua francesa, causando inveja ao narrador que, por sua vez, esbravejava aos quatro cantos que se casara com alguém vulgar. Eulálio conta suas experiências com raiva, evidenciando todo o rancor que guardara. É o efeito da casmurrice: situações passadas há tempos, quando revisitadas na caixa da memória, causam sensações agravadas ou distorcidas, mas não menos intensas.

Com uma descontinuidade cronológica, o livro é composto por fragmentos de memória do centenário, um grande campo semântico que ocasionalmente retorna à determinada passagem, completando as diversas histórias percorridas. Neste processo, mesmo o leitor mais ingênuo é capaz de perceber passagens de ciúme, como é visto na situação da dança, onde Dubosc, amigo de Eulálio, a pedido do protagonista, tira Matilde para dançar “Le maxixe”. Ao fim, o francês não lhe beija a mão, deixando o marido tanto enciumado, quanto envergonhado, a supor mil motivos pelos quais o amigo não se despedira da mulher com o mesmo gesto que dispusera ao encontrá-la, no início da noite – seria Matilde “uma mulher para dançar maxixe; e não para beijar a mão”.

“[…] Com o tempo aprendi que o ciúme é um sentimento para proclamar de peito aberto, no instante mesmo de sua origem. Porque ao nascer, ele é realmente um sentimento cortês, deve ser logo oferecido à mulher como uma rosa. Senão, no instante seguinte ele se fecha em repolho, e dentro dele todo o mal fermenta. O ciúme é então a espécie mais introvertida das invejas, e mordendo-se todo, põe nos outros a culpa de sua feiura.” (HOLLANDA, 2009, p. 61-62)

Com este trecho, podemos emplacar, ao menos como hipótese, o sentimento de Eulálio na categoria do ciúme como projeção; neste, acredita-se que a(o) parceira(o) deseja outro, quando, na verdade, o próprio inquiridor é quem deseja outro. Vale ressaltar que o outro não necessariamente se trata de alguém personificado; pode ser uma ideia, um tipo ideal. Partindo desse pressuposto, diante da situação exposta, o terceiro elemento poderia ser a secretária de Eulálio, ou mesmo o amigo de ocasião do casal, já que esse parecia deslumbrado com a esposa ao ponto de se mostrar desatento com o narrador-protagonista. Eulálio, por estas razões, dispenderia esforço desmedido e descabido para manter uma boa impressão, quando a mulher naturalmente deslumbrava a todos.

O protagonista tem o adicional da pressão por manter o nome da família. Quando o pai morre, é ele quem toma seu lugar. Eulálio diversas vezes menciona a mãe como alguém referente, ao compará-la com sua esposa. A relação dos pais é seu ideal. Aqui, vale lembrar que, no Complexo de Édipo, assim como no ciúme, existe um triângulo; neste caso composto por pai, mãe e filho. Quando o pai faleceu, esse esquema mudou, passando a ser uma reta entre mãe e primogênito. Sendo como o pai, Eulálio teria a mãe. Entre esquivas e rodopios, parece que o narrador sempre retorna ao ventre que o gerou, seguindo à risca a teoria edipiana. Por via de devaneios e lembranças descontínuas, estrutura que se repete durante todo o texto, o velho sempre encontra uma forma de encaixar alguma informação sobre sua mãe, em tom infantil, ao falar de Matilde. O bom filho à casa torna.

O terceiro e último tipo de ciúme, o ciúme como vazio, pode ser preenchido por Paulo Honório, personagem de ‘’São Bernardo’’. O livro conta a história de um homem, de origem humilde, que se torna dono de uma fazenda em São Bernardo. Depois de ter passado por muita dificuldade, tem o objetivo de arrecadar o máximo de dinheiro possível.

Com a terra expandindo e obtendo sucesso, vê a necessidade de gerar um herdeiro. Com isso, conhece Madalena, uma mulher mais nova, bonita e delicada. Casam-se em pouco tempo, e ele oferece à esposa um emprego na escola da região, feita para alfabetizar seus funcionários, na intenção de causar uma boa impressão ao governo local.

Sem muita demora, as desavenças começam a aparecer. Era uma mulher inteligente, forte; e não submissa, como pensara o narrador. Madalena também se percebe insatisfeita com o jeito duro e grosseiro do marido, casmurro (por outros motivos) como Bentinho. E, passado pouco tempo, o homem começa a se incomodar com as conversas entre amigos. Paulo Honório não sentia ciúme de uma só pessoa, mas de todos os homens, até mesmo do Padre. Madalena, que não se habituara à vida no campo, se sentia cada vez mais sozinha e infeliz com seu casamento, chegando a sofrer ameaças físicas, com os ‘’dedos que parecem de pedra’’ descritos pelo homem.

Nem o nascimento do filho conseguiu amenizar seu descontrole. Não era capaz de amá-lo, não sentia nenhum tipo de afeto, não gostava do menino. ‘’Nem sequer tenho amizade ao meu filho. Que miséria!’’ (RAMOS, 1934, p. 234). Mas, ao contrário de Dom Casmurro, Paulo Honório não duvida de sua paternidade em nenhum momento.

Quando Madalena, em meio a conversas com terceiros, mostrava seu lado intelectual, o narrador se sentia mal. Achava que a escola era inútil, aprender a mexer com a terra seria mais importante. “Não gosto de mulheres sabidas.

[...] Madalena, propriamente dita, não era uma intelectual. Mas descuidava-se da religião, lia os telegramas estrangeiros. E eu me retraía, murchava.’’ (RAMOS, 1934, p. 167).

Pouco depois, na página seguinte, afirma: ‘’Eu tinha razão para confiar em semelhante mulher? Mulher intelectual.’’. Os dois trechos mostram o homem desdenhando da mulher, a princípio negando sua intelectualidade, não admitindo tal sabedoria, assim como Eulálio, em ‘’Leite Derramado’’, com inveja de Matilde. Posteriormente, chama Madalena de intelectual, porém em tom pejorativo.

A mulher, depois de muito sofrer com o ciúme exagerado do marido, tira a própria vida. “- O que estragou tudo foi esse ciúme, Paulo’’, diz, em sua última conversa.

“Palavras de arrependimento vieram-me à boca. Engoli-as, forçado por um orgulho estúpido. Muitas vezes por falta de um grito se perde uma boiada.’’ (RAMOS, 1934, p. 202), escreveu em seguida.

Paulo Honório, pela vida difícil que teve, não era capaz de amar. Perdeu sua mãe ainda cedo, seu pai não é mencionado no livro. Casou-se apenas para gerar um herdeiro, que também não lhe transmitia sentimento algum. Numa passagem, ao observar toda a terra que era de seu domínio, pensou: “[...] onde vive gente que nos teme, respeita e talvez até nos ame.’’ (RAMOS, 1934, p. 197) Com seu jeito casmurro caipira de ser, um jagunço, o temer vinha primeiro, implicando no respeito, e por último o possível amor, que é algo tão condicional ao ponto de utilizar as palavras “talvez’’ e ‘’até’’ juntas.

Seu ciúme poderia ser classificado como o ciúme como vazio, pois é isso que sente. Um vazio. Acredita que a mulher deseje todos, pois não pode ser desejado. No último capítulo do livro, torna explícito tal pensamento: “Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.’’ (RAMOS, 1934, p.233-234) – dedos anteriormente mencionados ao quase agredir Madalena.

O que São Bernardo, Leite Derramado e Dom Casmurro tem em comum são as memórias como algo sagrado, inteiramente certeiro. A solidão de homens já idosos, abandonados pelas mulheres por quem tanto sentiam ciúme, impõe a todos eles, sob diferentes espectros, a necessidade de compartilhar seus respectivos sofrimentos e angústias, numa tentativa de justificarem, para si mesmos, os tais acontecimentos que desgraçaram suas vidas.

Colégio São Domingos
Nome: Lucas Guido – Número: 17 – Série: 1A – Data: 25/03/2020

Ensaio: O ciúme na Literatura

É Amor?

O ciúme é um tema muito abordado por diversos autores, teóricos, poetas e ficcionistas. De modo que um texto ensaístico, ao tentar promover um panorama do ciúme na literatura, poderia derivar infinitamente por entre mitos, poemas, textos dramatúrgicos, romances... Contudo, estes dez dedos a bater em quarenta teclas pretendem se ater à investigação em torno do ciúme no romance “Leite Derramado”, de Chico Buarque, publicado em 2009, tomando por recorte o capítulo 11. Este livro é narrado por Eulálio Montenegro d’Assumpção, um enfermo centenário que, durante o período de sua internação, conta diversas memórias de sua vida. Ele tem uma linhagem “nobre”, que parece começar a se esvair na geração posterior à sua. Sua família tem origens europeias e sua trajetória facilmente se confunde com a trajetória do Brasil.

Esta obra aborda diversas questões sociais, políticas, econômicas e culturais. A respeito do ciúme, especificamente, o narrador menciona, no capítulo 11, que tal sentimento é uma expressão nobre e cortês, não se sabe se pelo sentimento ou pela linhagem de quem sente:

“Com o tempo aprendi que o ciúme é um sentimento para proclamar de peito aberto, no instante mesmo de sua origem. Porque ao nascer, ele é realmente um sentimento cortês, deve ser logo oferecido à mulher como uma rosa. Senão, no instante seguinte ele se fecha em repolho, e dentro dele todo o mal fermenta. O ciúme é então a espécie mais introvertida das invejas, e mordendo-se todo, põe nos outros a culpa de sua feiura” (HOLANDA, Francisco Buarque de. Leite Derramado. p. 61-62. São Paulo: Companhia das Letras, 2009)

Neste capítulo, Eulálio conta que Matilde contraria as coisas que sua mãe, sogra da moça, pede e, por vezes, impõe; e apresenta uma rixa entre as duas. Então, ele lembra de um dia em que os dois foram a uma festa e um convidado, chamado Dubosc, pediu permissão para dançar com Matilde. Eulálio permite, e os dois dançam. No começo, Eulálio apresentara alguma admiração pela dança, mas começou a sentir ciúmes conforme o tempo foi passando. Ao chegar em casa, o narrador é tomado por algo obscuro, “entre a vergonha e a raiva de gostar de uma mulher que vive na cozinha”, já que Matilde sempre se dirigia à cozinha quando chegava em casa. Em uma onda de ciúmes, prende a esposa à parede, prensando-a.

Percebemos que o narrador pensa que Matilde tem de servi-lo, disposta a fazer qualquer coisa para satisfazê-lo, e suprir seus desejos, tanto emocionais, quanto sexuais.. Enquanto Eulálio tenta controlar a esposa, ela parece sustentar uma personalidade própria e muito forte, o que acaba conflitando com a possessividade de Eulálio. O protagonista também sente desejo sexual em excesso pelo corpo dela. Isso fica explícito em “Preferia ir à fazenda porque adorava montar, e eu ficava perturbado ao trotar na sua cola, sentia quase um desejo do cavalo”. Partindo deste pressuposto, podemos pensar no ciúme sentido por Eulálio como o descrevido por Freud como “ciúme como vazio”, pois ele sente que está perdendo Matilde até para a cozinha, de tanta insegurança e medo. Ele sempre a reprimiu, nunca a compreendeu, criando uma falta de sintonia entre os dois, o que reforça sua insegurança.

Eulálio também revela, no decorrer da narrativa,  uma visão conservadora e objetificada sobre a mulher, e isso é algo que vem de sua família. Para comprovar tal decorrência, há que se considerar o fato de que seu pai era frequentador assíduo de cabarés franceses, e tanto iniciara, quanto incetivara a vida sexual do filho, baseada na posse que o dinheiro pode oferecer. Com isso Eulálio desenvolveu um forte gosto pelas mulheres, que se mistura com seu preconceito e ciúmes, revelando, em certa medida,  a visão da maioria da população masculina sobre a mulher na época em que se passa o enredo, o que demarca , inclusive, a linhagem dos Assumpção, e pode ser visto através das imposições à Matilde por parte da mãe de Eulálio, modelo de mãe, esposa e senhora.

O narrador também apresenta traços psicológicos bem característicos. Além de seu ego inflado pela sua genealogia, deixa transparecer  diversos tipos de preconceito, como o machismo e o racismo. Podemos observar essas características em seu discurso de possessão em relação às  mulheres e às pessoas negras: quando descreve Balbino, por exemplo, diz “um preto meio roliço”; já Matilde, refere-se por uma moça de “pele quase castanha”.  Enquanto descreve Balbino de forma preconceituosa, utiliza eufemismos raciais para caracterizar a esposa, o que configura, em ambos os casos, situações de racismo. Ademais, quanto ao machismo, também se pode perceber  a necessidade de controlar tais personagens, principalmente nos primeiros capítulos, quando sente vontade de “enrabar Balbino”, usando o pretexto senhorial de “direito de primícias”; ou quando está na igreja e sente vontade de assediar Matilde, indicando que teria poder sobre ela.

Todavia, ainda resta algo que nos deixa em dúvida sobre qualquer coisa que Eulálio conta: a  “Condição de confirmação”, situação de interlocução mnésica mencionada por Lowenthal, no texto “Como conhecemos o passado?”, e que também aparece em Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis, e tantas outras obras que abordam os ciúmes. Tal circunstância se dá, na narrativa, por meio da narração em primeira pessoa que contempla o leitor como virtualidade ouvinte, e que permite a manipulação dos fatos ao bel-prazer do narrador, segundo sua memória. Não é uma narração fatídica; trata-se, antes e sobretudo, de um editorial dos reais acontecimentos, pois “a memória é uma ilha de edição”, como bem observara e escrevera o poeta Waly Salomão. Em “Leite Derramado”, isso fica evidente na passagem em que Eulálio sente desejo por seu escravo e afirma que “já desconfiava que ele também se movia ali no alto com malícias, depois tinha um jeito meio feminil de se abaixar com os joelhos juntos, para recolher as mangas que largava no chão”; logo na sequência,  sentencia: “Estava claro para mim que o Balbino queria me dar a bunda”. Ora, nesse caso, não seria a perspectiva - e também a narração - um atalho conveniente da vontade?

Se Eulálio manipula os fatos para tentar conquistar minimamente seus ouvintes e dar razão à sua narrativa,  não é difícil desconfiar de que o ciúme também faça parte de sua retórica sentimental, retratado como “flor que perfuma a vaidade das mulheres” ou “repolho que se fecha em si mesmo, fermentando todo o mal, e culpando os outros pela desgraça de sua feiura”. Pois ambas as metáforas bem podem ser mascaramentos de um casamento possessivo, similar ao caso de  “O Canalha”, crônica de Nelson Rodrigues, presente na coluna “A vida como ela é…”, estreada em 1950, que retrata um triângulo amoroso, no qual um homem, Lima, perde sua noiva para a imagem que criara do amigo, Dudu. Em narração, Lima tenta convencer a noiva [e o leitor] de que seus avisos a respeito da índole canalha de Dudu não passam de um cuidado para com a noiva, o que acarreta dois efeitos contrários: a paixão da noiva pela imagem que Lima criara de Dudu, e a desconfiança do leitor em relação à veracidade de tudo o que foi narrado.

Sendo assim, será que Matilde realmente ia sempre à cozinha? Será que seus modos eram vulgares à época? Será que era lasciva e/ou degenerada? Será que tinha “a pele quase castanha”? Será que consentia os carinhos agressivos do marido? Será que se sentia bem ao seu lado? Será que aceitara, por si e de bom grado, o casamento? Será que ambos estavam apaixonados? Será que era amor?

Bibliografia:
BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
SCHWARZ, Roberto. Cetim laranja sobre fundo escuro. In: Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
FERREIRA e CROZARA. LEITE DERRAMADO: percepções acerca da história do romance na obra de Chico Buarque. Disponível em https://editora.pucrs.br/Ebooks/Web/978-85-397-0198-8/Trabalhos/111.pdf. Acesso em 25/03/2020.
WINGERT e MARTINS. Eulálio e Matilde: estereótipo racial e a construção do masculino e do feminino, dentro da obra O Leite Derramado. http://www.gestaouniversitaria.com.br/artigos/eulalio-e-matilde-estereotipo-racial-e-a-construcao-do-masculino-e-do-feminino-dentro-da-obra-o-leite-derramado. Acesso em 24/03/2020.
VIEIRA, Y. F. O monstro de olhos vários: O ciúme na literatura. Remate de Males, v. 22, n. 2, p. 333-360, 8 nov. 2012.