Interessa-nos lançar o texto que segue para provocar um debate público com desdobramentos ainda não dimensionados. Sentimos a urgência dessa ressonância crítica em relação ao momento que vivemos amplamente. A despreocupação com ineditismos ou com alguma precisão acadêmica foi assumida em benefício da síntese de reflexões contemporâneas sobre o tema e da comunicação clara em busca de interlocução também clara. Certamente, falamos de forma genérica: a criança, o adolescente e o adulto a que nos referimos não têm rosto nem biografia e, portanto, não se confundem com aquelas pessoas de carne e osso que vocês, leitores, são ou têm pela frente. A iniciativa do texto é apenas a partida para que nossa reflexão, em sendo ampliada, tenha algum valor real. Vamos lá...
Há registros etimológicos na raiz latina para a expressão adolescer (crescer, fazer-se grande, fortalecer) desde seis séculos atrás. Porém, somente no início do século XX a expressão adquiriu estatuto conceitual e passou a ter a importância que a psicanálise lhe conferiu. Freud mesmo tematizou tão somente a puberdade (Três ensaios sobre a sexualidade), mas a partir daí gerações seguidas de psicanalistas se ocuparam de problematizar a adolescência. Na psicologia da educação, Piaget foi quem colocou importância no conceito que caracterizaria a transição da fase da constituição heterônoma da personalidade dos indivíduos para a construção da identidade adulta da qual a autonomia seria característica fundamental.
Desde lá, o conceito de adolescência passou por abrangências variadas. No contexto atual, podemos reconhecer uma hipervalorização da adolescência. Temos entre nós a adolescência como uma expressão identitária e não mais somente uma fase transitória. Isso tem implicações notáveis: de momento difícil, de indefinição entre o infantil e o adulto, de fase “moratória” da qual os jovens faziam o possível para rapidamente se livrar e poder ser reconhecidos como mais velhos, a adolescência se transformou em um território seguro, uma identidade a ser cultivada e prolongada para além da idade púbere.
O fato é que a adolescência transformada em identidade encontra território firme e em expansão num contexto em que todas as identidades socialmente produzidas, com suas prescrições mais ou menos estáveis para o exercício de papéis mais ou menos esperados, estão em xeque pela pluralização de subjetividades e exigências de flexibilização dos “jeitos-de-ser” convencionais.
Em grande parte, esse fenômeno está ligado ao fato de a economia de mercado ter localizado na adolescência seu target preferencial. Transformados em público alvo do consumo generalizado, os adolescentes passaram, nas duas últimas décadas, a merecer também por parte do mercado uma atenção dedicada. Publicações teen, moda teen,programação de TV específica, literatura juvenil constituem algumas das estratégias publicitárias para cativar esse público para o consumo.
Como efeito colateral, a idealização da imagem adolescente – aliviada das crises,dos corpos desengonçados, da erupção das acnes, do pensamento inconsistente pontuado pelos jargões ou códigos exclusivos – passou a ser consumida também de maneira generalizada. Na perspectiva da juvenilização compulsória de todas as idades, a adolescência ganhou retoques primorosos em sua imagem e tornou-se um modelo social.
Transformação incrível: de fatia de mercado para consumo de produtos, a adolescência é edulcorada e passa a ser mercantilizada, ela própria consumida.
No final dos anos 90, esse diagnóstico social começou a circular e chamou a atenção pela formulação que recebeu. Adotou-se a neoexpressão adultescência para referir o comportamento adolescente assimilado pelos adultos. O apelo de juvenilização assumido pela sociedade contemporânea parecia tender a abolir o valor do amadurecimento do horizonte das gerações nas quais se depositavam as expectativas de ser o suporte da experiência acumulada historicamente e da autoridade advinda de tal distinção. Verificava-se, já naquela época, que faltavam candidatos a preencher a vaga de adultos na sociedade.
Do ponto de vista daqueles que se encontram na adolescência, na idade própria,esse seqüestro de suas subjetividades é causador de muita ansiedade. Todo o esforço dessa fase cronológica está na tentativa de produzir marcas comportamentais diferentes daquelas sustentadas pelos mais velhos. Daí o histórico e providencial conflito de gerações. No entanto, como os “tiozinhos” e as “tiazinhas” passaram a perseguir seus passos, a tentar igualar-se a eles no uso das gírias, da moda, das atitudes, a necessidade de reinventar-se o tempo todo para tentar a originalidade é incessante, cansativa, angustiante. Chegam a buscar na reprodução das referências mais marginais atitudes cuja assimilação pelos mais velhos seria pouco provável. Frustração: mesmo ridiculamente, essas atitudes são também apropriadas pelas gerações das quais se esperava limites, cenho franzido, reprovação.
Logo, o que era residual, periférico em termos de moralidade, ganha legitimidade. Falsa legitimidade, pois se espera que o flerte com o marginal não vá além da simulação, da aparência. Mas quem é que ficou do outro lado do espelho para assegurar esse discernimento? Qual discurso social restou para lastrear a responsabilidade, a consideração do outro, a civilidade? Ninguém mais se dispõe a fazer o trabalho chato de pontuar a adequação de atitudes dos indivíduos para com eles mesmos e com os demais. Tudo o que puder parecer caretice não é assumido por ninguém.
Lembremos apenas que se abdicamos da tradição e ajudamos a desqualificar o passado – do qual os adultos são os representantes e deveriam ser guardiões –, aquela outra invenção humana maravilhosa que é o futuro também não se sustenta. Portanto, o aqui-agora torna-se a instância absoluta de nossas vidas.
Com essa dinâmica, os adultos encontram-se rendidos. Procuram adentrar um universo jovem cujas senhas são detidas pelos “donos do castelo”. Inverte-se o lugar da regra, da lei, da função interditora. Quem manda são os adolescentes. Só que sem código e com moralidade duvidosa – afinal, a construção da identidade moral na adolescência ainda requereria muitos tratos. Autoridade? Onde? Quem? Por quê? – “isso não é comigo”.
Outro reflexo dessa miragem social concedida à adolescência se faz notar nas crianças em tenra infância. Uma verdadeira infantescência pode ser também diagnosticada socialmente. Crianças, desde muito cedo, referenciadas nos modelos de comportamento adolescente acabam por desenvolver precocemente sensualidade, erotismo, insolência. Não é à toa que seus ídolos midiáticos são Rebeldes e High School Musical. O risco colocado para essa faixa etária é o da anulação da experiência infantil, constitutiva ela também, acredita-se, de aspectos estruturantes da personalidade. Fora isso, calcula-se que o recurso ao apelo erótico, especialmente nas meninas, desde tão cedo, deverá ser sustentado até após os 50 anos. Coitadas!
Adultos amigões, cúmplices, complacentes que idolatram a adolescência. Interdição em desuso. Incerteza sobre o futuro. Relações fluidas que rejeitam vínculos estáveis. A essas características de uma vida líquida ainda se soma a afirmação da felicidade, do gozo como um imperativo.
Está à venda em todas as casas de todos os ramos a idéia de que é possível e necessário ser feliz, ter prazer, estar satisfeito em tempo integral. Mentira bem pregada! Todos nos arvoramos na busca dessa sensação permanente e o que encontramos são recursos para simulação de um suposto bem-estar. Bem-estar por adquirir um bem novo,por conquistar uma relação nova, por consumir uma nova droga (lícita ou não) ou de novo a droga cujo efeito já cessou – todas essas situações requerem reiterações infinitas, uma vez que seus efeitos têm como prazo de validade o instante.
Tais simulações de gozo, tanto quanto o verdadeiro prazer, esgotam-se, são voláteis, evidentemente. Numa sociedade que sinaliza que felicidade é a condição a ser assegurada a qualquer tempo e custo, os comportamentos generalizados de consumo compulsivo e compulsório são compreensíveis. Porém o único sentimento que terá permanência certa dentro dessa busca será o de frustração. Não a frustração do desejo, pois esse nem sequer chega a ser construído. Mas do impulso, movimento que antecede a elaboração do desejo.
Frustrados, nos ressentimos, acabrunhamos, entristecemos. Mas para esses sentimentos não há mais lugar nem tolerância social. Logo, identificamos a frustração em nós mesmos e nos outros como uma manifestação que precisa ser evitada pelos acolhimentos profissionais ou remédios, ou os dois juntos. Tratamos a frustração como doença a ser curada.
Esse atropelo, essa precipitação que impede a elaboração do impulso e da frustração na construção do desejo torna todos nós bastante vulneráveis; mas, especialmente na adolescência, contribui para emperrar a produção da autoconfiança dos indivíduos. Não à toa, os adolescentes assim fragilizados recorrem, mais do que em outros contextos históricos, ao grupo; mas agora não como coletivo estruturado (com regulação e valores comuns), mas como turba – suporte para comportamentos e manifestações de pulsões sem elaboração.
Como poderão os adultos rendidos no seu papel de referência e autoridade lidar com as explosões da turba? Pleiteando sua inclusão no bando? Quem vai lhes dizer que o bullyng ou outros rituais de execração de indivíduos está a um triz da lógica de incineração de mendigos e índios? Brincadeirinha?
A voracidade com que o modo adolescente é consumido é a mesma com que eles, adolescentes, consomem. Já que a lógica é a dessa corrida insana do “quem consome quem”, não é incomum os adolescentes confortarem-se passivamente no lugar da pura fruição, daquele que espera para ver o que se lhe vai ser oferecido para julgar se vai aceitar entrar no jogo ou não. Se a oferta vier revestida de atrativos e constituir espetáculo, ótimo. Se for necessário envolver-se, construir, adiar a satisfação até que se complete um processo, péssimo. Nesse caso, certamente, a situação será entendida como tediosa e a reação será imediata, irascível – “absurdo!, sem noção!”. Mas nem essa reação será duradoura. Logo se isolarão em seus ipods e, ao som da trilha sonora que prepararam para si mesmos, se autoconsumirão – provavelmente, sem náusea. Mas esse é apenas um dos artifícios contemporâneos para zappear a realidade como se faz com o controle remoto diante da programação televisiva. Fatia-se o real aos pedaços. Selecionase apenas o que parece agradável, que entretém, que ajuda a evadir-se – solução de curtíssima duração. Suficiente para a satisfação da pulsão e mais nada.
Viver é sempre perigoso, mas viver dessa forma, sob a soberania das pulsões, é arriscadíssimo. Não esqueçamos que a morte é uma das pulsões primárias. E o que será dos sujeitos poupados das adversidades que lhes exporiam às frustrações próprias de uma condição maior que seus umbigos que é a vida em sociedade? Quando vierem a experimentar as situações mais elementares de frustração – que cedo ou tarde vão se impor – sem que tenham desenvolvido repertório psíquico mínimo para lidar com elas, a que recorrerão? Tomara que peçam ajuda...
Duro é constatar que essa condição se replica por todas as faixas de idade. Daí, quem restará para acolher os pedidos de ajuda?
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Silvio Barini Pinto