Aconteceu no final do século XIX, quando as concentrações industriais fizeram das cidades o cenário do que havia de mais inédito e espantoso nas relações sociais. Na ausência de proposições conceituais para tratar o fenômeno, a imagem do corpo humano foi empregada como referência para gerir os problemas apresentados. Seria possível dar saúde ao corpo urbano garantindo vigor ao seu coração (centralidade funcional), facilitando o fluxo arterial (até hoje falamos das principais vias de circulação como artérias da cidade), setorizando o funcionamento dos orgãos. Aos poucos, com o excesso de poluição, surgiu também a preocupação com a capacidade do pulmão das cidades. Lógico que os cuidados com esse corpo previam profilaxia e, às vezes, procedimentos cirúrgicos para as áreas doentes que comprometiam o equilíbrio do organismo – geralmente áreas de concentração de déficits, pobreza no caso das cidades. Esses tratamentos eram decididos pelos critérios da racionalidade de um cérebro de especialistas – hierarquicamente consagrados.
Talvez a imagem mais paradigmática empregada, nesse início de século XXI, seja a da rede. Redes neurais, conhecimento em rede, redes de comunicação, redes de produção e de comércio, redes de sustentabilidade. Se a metáfora do corpo mobilizava os conceitos e procedimentos da medicina, a da rede atrai as teorias e métodos da lingüística para operar como referência. Na linguagem – caso das redes de significação –, como nas outras tantas modalidades de redes, importa a articulação, a conexão entre os elementos variados que formam um contexto, uma realidade. Se esses mesmos elementos são dispostos diferentemente, se a proximidade entre eles muda, se algum passa a receber mais ênfase, o contexto se altera, o significado se modifica. Diversamente do corpo, que era visto no XIX como organismo em que as tantas partes teriam papéis previstos e determinados, a rede supõe a multiplicidade de funcionamentos e troca de papéis: um sistema cambiante. Ela está em construção permanentemente. Seus centros se alternam de acordo com as combinações, negociações, investimentos. Nada está determinado prévia nem definitivamente. Em caso de haver alguma estabilidade, ela durará o tempo que durar o esforço que lhe for dedicado. A rede tende à transformação.
Do ponto de vista comportamental, isso muda tudo. Sem predeterminação de papéis, o experimentalismo se torna regra. É possível ensaiar-se em vários papéis, experimentar identidades distintas. As múltiplas interações é que estão a possibilitar essa mobilidade complexa. O exercício de enredamentos virtuais, pela web, em coletivos de interesse profissional, afetivo ou comunitário, circunstanciais ou duradouros é de domínio público. A transposição dessa flexibilidade das interações virtuais para o exercício mais amplo de relações sociais é causador de inquietações, resistências, conflitos. Porém, apresenta-se como condição inelutável. Como cuidar para que essa transposição possa ser feita sem gerar caos, sem descartar referenciais importantes? A realidade escolar experimenta essa contradição cotidianamente e à larga.
Contraditório também é lidar na escola com a concepção de conhecimento em rede, sustentada filosoficamente, mas, muito mais do que isso, praticada por educadores e alunos nas mediações tecnológicas que exercitam – forma pela qual se expande e se instala cada vez mais a metáfora da rede no imaginário social: pelo procedimento, pela vivência. Na contramão dessa tendência, expectativas sociais, equipamentos governamentais, mídia, processos seletivos continuam a avaliar a escola por meio do paradigma do conhecimento especializado em disciplinas, hierarquizado por complexidade e mensurável por acúmulo de informações. Atuar, portanto, nesses dois registros quase antitéticos é um enorme desafio.
Institucionalmente, a noção de rede se ajusta à potencialização das relações internas e externas. Chama-nos à participação no coletivo escolar. Pela lógica da rede, cabe aos gestores educacionais (leia-se educadores) agenciar participação de saberes na construção de conhecimentos. Quem são os portadores desses saberes? Os alunos, nos grupos de trabalho; os funcionários, estagiários, professores, nas orientações dos porquês, do como fazer, do onde encontrar; os familiares, em atividades programadas de investigação, reflexão ou de inserção nas aulas, mas também na oferta de referenciais adultos e de moralidade; os profissionais e pesquisadores aos quais se recorre em situações de pesquisa; os vários meios de comunicação; os acervos culturais todos – vários deles acessíveis no universo web.
Nossa opção tem sido a de instalar a rede nas bordas do tecido escolar já constituído. Estratégia de aranha. Acrescentamos a inovação ao existente, envolvendo-o aos poucos: a dinâmica de trabalho com projetos de pesquisa para o Ensino Médio, em tempos estendidos na escola; os estudos de campo empregados como disparadores da curiosidade e questionamentos que ultrapassam as fronteiras disciplinares; o estímulo ao protagonismo de alunos em projetos sociais que permitem intercâmbio de saberes entre realidades diferentes; a produção de eventos com a participação da comunidade – o fórum de trajetórias profissionais com relatos das famílias para os alunos, espécie de agenciamento que abre perspectivas de futuro para os jovens; e tantos outros convites a pais e mães para refletir sobre questões que outrora ficavam no âmbito exclusivo da escola ou das famílias – são alguns dos dispositivos a serviço da transição cautelosa e consistente.
A gestão do conhecimento e de outros recursos numa escola, sob o signo da rede, implica reconhecer riquezas e saberes plurais, a importância deles e dessa pluralidade e articulá-los para formar contextos; requer também avaliar nos contextos criados quais nós da rede estão enfraquecidos e agenciar recursos para energizá-los; quais pontos estão fortes, iluminados, mas cuja produção não condiz com os princípios pelos quais a comunidade existe e, por isso, redirecioná-los. Envolve tomar decisões pensando em repercussões sistêmicas – diferentemente das intervenções cirúrgicas pontuais. Como vemos, uma gestão que busca reconhecer e valorizar os recursos existentes interpretará seus portadores pelo que trazem e pelo que pode ser conjugado na produção coletiva. A rede pode tomar muitas formas e o que a define são os potenciais que a integram e como eles são enredados.
Contrariamente, quando se tem um modelo predefinido para encaixar o funcionamento escolar, somente são validados potenciais preconceituados. Nesse caso, é comum olhar para os envolvidos com o olhar perscrutador da falta, do que eles deveriam ter, mas não dispõem.
Pessoal ou institucionalmente, nosso tempo exige encarar o paradoxo de lidar, ao mesmo tempo, com o corpo e a rede como metáforas paradigmáticas. Quando se trata de levar a sério e às últimas conseqüências tamanho desafio, ele requer habilidades que apenas coletivamente conseguimos reunir.
Silvio Barini Pinto