Tragédia na escola de Realengo (RJ): modos de olhar
Fomos atingidos no fígado! As imagens do massacre de crianças no interior da escola carioca no início de abril de 2011 certamente afetaram-nos pela indignação, medo, raiva. Desconcerta-nos pensar que o indivíduo que o cometeu poderia passar ao nosso lado sem gerar nenhuma suspeita de pretender o massacre que protagonizou. Incomoda-nos admitir que ele partilhe conosco a condição humana. Revolta-nos que o cenário da chacina tenha sido justamente uma instituição dedicada a humanizar a vida social.
As vítimas todas e suas famílias merecem nossa compaixão. As crianças sobreviventes, os educadores e funcionários da escola são dignos de nossa solidariedade. Disso ninguém duvida.
Dia seguinte, talvez já seja a hora de levar a reação do fígado para o intelecto. Certamente a cobertura midiática não sintonizará com esse propósito.
Mas, nós educadores temos o dever de favorecer a reflexão que ajude a dimensionar lucidamente o episódio. É importante produzir um afastamento que nos permita ir além das narrativas sensacionalistas com que ele é embalado para consumo. Necessitamos escapar do bombardeio serial de imagens repetidas e micro informações que tentam sustentar duradouramente no público as emoções – e só elas – experimentadas no primeiro impacto causado pelo fato.
Foram esses objetivos que nos levaram a solicitar aos nossos alunos que expressassem como as notícias do massacre os afetaram.
Comovidos, num primeiro momento, alguns produziram mensagens acolhedoras aos vitimados. Depois, mais encorajados, vários falaram de medo de sair de casa, outros perguntaram se iremos sofisticar os dispositivos de segurança da escola. Columbine (EUA) foi lembrada pela similitude. Muitos queriam saber exatamente porque o “atirador de Realengo”, como está sendo chamado, agiu daquela forma. Vários ressoavam as chaves explicativas: “ele sofreu bullying na escola”, “ele era esquizofrênico”, “era fanático religioso”, “solitário”, “esquisito”, “foi sua revolta por não ter perdido ainda a virgindade”, “tinha tara sexual e visava atingir as meninas”.
O que ouvimos nessas manifestações espontâneas e sinceras parece comunicar desejo (que é comum a nós todos) de proteção incondicional e necessidade de dar ao fenômeno uma explicação que baste por si mesma – um algoritmo que sintetize a complexidade.
Nunca saberemos as motivações verídicas do sujeito que disparou sobre as crianças. Esse é um limite diante do qual não nos conformamos facilmente. Nenhuma das especulações, pistas, ilações produzidas a partir de migalhas informativas serão suficientes para dar conta da complexidade que se instalou na mente do assassino para que ele agisse. O risco de adotar qualquer uma das “chaves explicativas” é justamente produzir o avesso do que a sociedade necessita mais e mais. Podemos aguçar o preconceito contra religiosos, portadores de esquizofrenia, pessoas mais contidas, solitárias. Mesmo as afirmações de que o bullying que o autor dos disparos sofreu teria instalado a crueldade em sua personalidade é uma construção discursiva de efeito temerário. Pode ser utilizada para hostilizar possíveis detratores. Agressão contra agressão gera mais intolerância ainda.
A ação do assassino problematiza a condição humana. Inquieta-nos ter de admitir que mesmo agindo animalescamente ele continue pertencente à espécie. A humanidade é algo construído culturalmente, é produto de um esforço civilizatório que não termina nunca, felizmente. O inacabamento, a imperfeição são próprios da hominização.
Cada indivíduo processa o investimento cultural na civilização de maneira muito singular e complexa. Alguns escapam aos padrões. Às vezes, isso lhes impõe a marginalidade, o sofrimento, a doença, a morte de si e/ou dos outros. Portanto, ao lado do questionamento da motivação para alguém assumir comportamento tão díspar dos padrões aceitos no atual contexto civilizatório, como aconteceu no Rio, há que se refletir sobre a prática de isolamento social de quem manifesta diferenças.
Obviamente, esse caso choca, e muito, principalmente por ultrapassar tanto a curva de normalidade dos comportamentos que sustenta o equilíbrio de nossas relações sociais. Porém, precisamos perguntar: teria esse fulano chegado ao extremo que chegou se tivesse tido oportunidade de acolhimento familiar, de amigos, profissional? Ninguém percebeu que o indivíduo se isolava e manifestava carências? Se percebeu, provavelmente reagiu da maneira mais normal (e bem aceita socialmente) que é dizer “cada um com seus problemas”.
Foi desse senso comum que partimos com os alunos para lembrá-los que o antídoto contra a manifestação de atitudes como a do “atirador de Realengo” é a construção de uma malha (evito a palavra rede, intencionalmente) de relacionamentos que nos proteja de nós mesmos em situações-limite de recusa civilizacional, de rebeldia autodestrutiva, de desespero.
O medo em excesso produz monstros! Portanto, quem é que ganha com a sustentação da paranóia coletiva que esse episódio suscita? Certamente aqueles que oferecem segurança: estado forte, empresas de segurança, vendedores de seguro, alarmes, cercas elétricas, câmeras, detectores de metais ...
Agora que sabemos que também no Brasil há um caso de invasão de escola e massacre de crianças, devemos blindar nossos colégios? Para alguns, a resposta é outra pergunta: qual a probabilidade de algo semelhante voltar a ocorrer? De nossa parte, propomos uma nova questão: que papel pode ter a educação para evitar que desgraças desse porte (coletivas ou individuais) ocorram em qualquer circunstância e não apenas em escolas?
Na nossa pergunta está contida já a ideia de que só podemos trabalhar para evitar. Assumimos essa condição honestamente. Empresas que vendem segurança não assumem isso. Entretanto, mesmo com todos os dispositivos sofisticados, bancos e lojas continuam a ser assaltados. Evitamos a hipocrisia. Temos claro que sobre a ação humana (desviante que seja) não há controle suficiente. Portanto, não vamos engrossar a onda paranoizante que dá azo a uma sociedade do controle a la Big Brother – o de G. Orwell, não o da Globo.
O impacto de Realengo não abalará nossa crença de que educar envolve prestar atenção às pessoas (não somente para controlá-las), levar em consideração suas subjetividades, afirmar positivamente suas diversidades, oferecer-lhes continência quando necessário, exercitar com elas a cooperação, o diálogo, o desafio de não aceitar soluções fáceis e ligeiras sem refletir grande.
Continuaremos a praticar e incentivar o enlace comunitário como referência para a construção de malhas relacionais que possam nos sustentar quando tombamos do trapézio.
Seguiremos na intenção de aquecer as redes digitais. Diante de uma tragédia como essa, convocamos todos a ampliar suas reflexões e a realizar seu compromisso civilizador com aqueles que estejam à volta. Vamos apenas recordar que segurança absoluta era o que o atirador pretendia quando chegasse a um suposto paraíso. Pois que lá fique, bem seguro!
Silvio Barini Pinto