Começara a ler o romance dias antes. Abandonou-o por negócios urgentes, voltou à leitura quando regressava de trem à fazenda; deixava-se interessar lentamente pela trama, pelo desenho dos personagens. É assim que tem início o curtíssimo conto “Continuidade dos Parques”, em que Julio Cortazar expressa o estado a que somos remetidos quando lemos um romance (leia o conto na íntegra no final).
Quem já não abandonou um romance por negócios urgentes? Quem já não voltou ao livro em uma hora vazia de atribulações cotidianas? É a partir dessa experiência comum que iguala todos nós, leitores, que o escritor emoldura o que há de mais enriquecedor no ato de ler.
Continuidade de mundos, continuidade dos parques: o homem que se deixava interessar lentamente pela trama na viagem de trem chegou a seu destino. Mais uma vez, tratou de cuidar de seus afazeres, e logo voltou ao livro. Certamente, o desenho dos personagens, a promessa de um encontro furtivo entre eles fez com que se apressasse a buscar a tranquilidade do escritório que dava para o parque de carvalhos. Abandonou-se então na poltrona de veludo verde e respaldar alto, sua favorita, precavendo-se de intromissões irritantes que o impedissem de ler os últimos capítulos.
Sabemos bem do que se trata, não? Os últimos capítulos. Somos tomados por uma ansiedade que, por vezes, nos faz pular frases, parágrafos inteiros e até páginas. Excesso de descrições nos põe nervosos. Queremos chegar ao fim, saber o desfecho. Manipulamos o livro a nosso bel-prazer, somos co-autores. Se o escritor tem o poder de criar a história, de nos prender em suas palavras, em contrapartida, somos nós que decidimos como nela penetrar, deixando nossas impressões digitais naquelas páginas marcadas com orelhas nas pontas.
O jogo é esse, escritor e leitor se tornam parceiros, cúmplices.
O homem-leitor que se permitia gozar do prazer de se afastar, linha a linha, daquilo que o rodeava, com os cigarros ao alcance da mão e embalado pela dança dos janelões no ar do entardecer, ia sendo absorvido pela trágica desunião dos heróis. Mais: foi testemunha do último encontro na cabana do mato.
E nós, o que testemunhamos quando lemos o conto Continuidade dos Parques? Como a irmã do quadro de Iman Maleki (obra apresentada no evento LER), também “pegamos carona” no “abandono” do homem-leitor que “se deixa arrastar pela leitura”. Assim como ele, vamos sendo tocados pelas imagens que se formavam e adquiriam cor e movimento. Mas estamos, de certa forma, mais apartados que a irmã – estamos diante da poltrona e não atrás dela. A luz ilumina o homem-leitor e não o romance que tem nas mãos. Não nos é dado conhecer, portanto, o diálogo envolvente que corria pelas páginas como um riacho de serpentes. O que os amantes teriam dito entre as carícias? Quais seriam os impedimentos, azares, possíveis erros que os levaram a se separar na porta da cabana?
Tudo está decidido desde o começo: o autor tem a história nas mãos, tem o poder de calar os cães, de anoitecer, de fazer a mulher seguir pelo Norte. Onde estamos então como leitores? Somos apenas receptivos passivos da mensagem que nos é transmitida? Não. Ler é muito mais do que isso. Somos, sim, “atravessados pelo livro.” E aqui, neste micro conto, são pelo menos dois os atravessamentos – na história dos amantes e na história do homem-leitor. Ambas, por sinal, apenas insinuadas: sabemos que a mulher tem receio. Mas do quê, exatamente? Quer dissuadir o amante de algo. Bem, ele traz um punhal e uma decisão junto ao peito. Não quer mais as cerimônias de uma paixão secreta. Já o homem-leitor parece estar às voltas com negócios que envolvem a administração de sua fazenda. Fuma, prefere a poltrona de veludo verde e respaldar alto. As pistas são escassas.
Tudo nos escapa. “Lemos a nós mesmos quando lemos?”. Lemos com todo o corpo, mas, paradoxalmente, nossos corpos são destruídos na leitura, pois se misturam aos dos personagens, perdem os limites, estão apenas em continuidade com os corpos da mulher, do amante. E do homem-leitor... ele sobreviverá? Quem o apunhalará pelas costas? Algum desafeto? O amante de sua mulher? Ou, mergulhado no romance, ele apenas fantasia e imagina para si o mesmo desfecho que a ficção anuncia?
Pouco importa, na verdade... importam os espaços vazios, o branco entre as palavras, importa o silêncio necessário para a “decifração”, o “transporte”, importa a disposição para entregar-se a uma solidão acompanhada. Hora de descanso em que nos permitimos permanecer em outra dimensão de tempo, despreocupados da moral e bons costumes. Nada precisamos discriminar. Basta aceitar um jogo que nunca chega ao fim. Fechamos o livro, viramos a página, mas cada leitura que fazemos reverbera infinitamente.
Abaixo, você encontra o texto completo traduzido:
Continuidade dos Parques
Julio Cortazar (in Final del juego, 1956)
Começara a ler o romance dias antes. Abandonou-o por negócios urgentes, voltou à leitura quando regressava de trem à fazenda; deixava-se interessar lentamente pela trama, pelo desenho dos personagens. Nessa tarde, depois de escrever uma carta a seu procurador e discutir com o capataz uma questão de parceria, voltou ao livro na tranquilidade do escritório que dava para o parque de carvalhos. Recostado em sua poltrona favorita, de costas para a porta que o teria incomodado como um irritante possibilidade de intromissões, deixou que sua mão esquerda acariciasse, de quando em quando, o veludo verde e se pôs a ler os últimos capítulos. Sua memória retinha sem esforço os nomes e as imagens protagonistas; a fantasia novelesca absorveu-o quase em seguida. Gozava do prazer meio perverso de se afastar, linha a linha, daquilo que o rodeava, e sentir ao mesmo tempo que sua cabeça descansava comodamente no veludo do alto respaldo, que os cigarros continuavam ao alcance da mão, que além dos janelões dançava o ar do entardecer sob os carvalhos. Palavra por palavra, absorvido pela trágica desunião dos heróis, deixando-se levar pelas imagens que se formavam e adquiriam cor e movimento, foi testemunha do último encontro na cabana do mato. Primeiro entrava a mulher, receosa; agora chegava o amante, a cara ferida pelo chicotaço de um galho. Ela estancava admiravelmente o sangue com seus beijos, mas ele recusava as carícias, não viera para repetir as cerimônias de uma paixão secreta, protegida por um mundo de folhas secas e caminhos furtivos, o punhal ficava morno junto a seu peito, e debaixo batia a liberdade escondida. Um diálogo envolvente corria pelas páginas como um riacho de serpentes, e sentia-se que tudo estava decidido desde o começo. Mesmo essas carícias que envolviam o corpo do amante, como que desejando retê-lo e dissuadi-lo, desenhavam desagradavelmente a figura de outro corpo que era necessário destruir. Nada fora esquecido: impedimentos, azares, possíveis erros. A partir dessa hora, cada instante tinha seu emprego minuciosamente atribuído. O reexame cruel mal se interrompia para que a mão de um acariciasse a face do outro. Começava a anoitecer.
Já sem olhar, ligados firmemente à tarefa que os aguardava, separaram-se na porta da cabana. Ela devia continuar pelo caminho que ia ao Norte. Do caminho oposto, ele se voltou um instante para vê-la correr com o cabelo solto. Correu por sua vez, esquivando-se de árvores e cercas, até distinguir na rósea bruma do crepúsculo a alameda que o levaria a casa. Os cachorros não deviam latir, e não latiram. O capataz não estaria àquela hora, e não estava. Subiu os três degraus do pórtico e entrou. Pelo sangue galopando em seus ouvidos chegavam-lhe as palavras da mulher: primeiro uma sala azul, depois uma varanda, uma escadaria atapetada. No alto, duas portas. Ninguém no primeiro quarto, ninguém no segundo. A porta do salão, e então o punhal na mão, a luz dos janelões, o alto respaldo de uma poltrona de veludo verde, a cabeça do homem na poltrona lendo um romance.
Claudia Perrota