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Instrução da representação e protagonismo local: estratégias de intensificação da experiência democrática

Muito sugestiva a questão colocada no debate sociológico sobre a atualidade do conceito de democracia. Resumidamente, a indagação é: como a democracia passou de uma aspiração revolucionária no século XIX a um slogan adotado universalmente mas vazio de conteúdo no século XX e início do XXI.

No mínimo, essa questão traz a compreensão de que o conceito de democracia passou por processos históricos que deram a ele significados, procedimentos e limites muito específicos de acordo com os contextos de sua manifestação. Não falamos hoje de democracia como os franceses falavam durante o processo revolucionário que destituiu o antigo regime. Também não damos ao termo o significado que o regime militar lhe atribuiu nos anos de chumbo.
Além desse aspecto, ela traz também a noção de que recentemente as fórmulas democráticas vigentes e mais conhecidas declinam para a degradação das possibilidades de exercício político pleno dos cidadãos. Mais e mais, a abstenção aumenta dramaticamente nos rituais de eleição e, ao longo dos mandatos, os cidadãos – mesmo os eleitores –, não se consideram representados por aqueles que foram escolhidos para fazê-lo.
É mais gritante essa contradição nos tempos atuais, pois os processos de globalização que vivemos fazem vir à tona nas sociedades tamanha pluralidade de identidades e interesses que o sistema de representação política é incapaz de atender, sequer assimilar.

Deparamo-nos com limites muito palpáveis da democracia representativa vigente: a inevitável tendência dos cidadãos perderem o controle sobre o processo de gestão social, por um lado; e, por outro, a crescente submissão dos cidadãos a formas de controle burocrático constituídos por aqueles que deveriam representar seus anseios de liberdade.

Estamos em meio, portanto, a uma crise da democracia representativa e, nesse momento mesmo, insinuam-se, ensaiam-se formas renovadas de participação. Muitas outras vozes além daquelas dos supostos representantes insistem em fazer-se ouvir socialmente. Fala-se da ultrapassagem da democracia de baixa intensidade por um experimentalismo democrático capaz de dar conta das múltiplas maneiras de articulação cultural, econômica, étnica, institucional.
Para que isso se generalize, a dimensão pública na qual jogamos o jogo democrático deve constituir um local no qual indivíduos - sem restrição de status – podem questionar em público, por meio de deliberação societária, a sua exclusão de arranjos políticos estabelecidos nas esferas institucionais. Liberdade de apresentação de razões entre iguais constitui um exercício coletivo e plural de poder político.

Topar esse desafio envolve desmistificar os princípios que atribuem racionalidade incondicional às posturas da maioria; envolve também guardar certo ceticismo sobre a capacidade das formas burocráticas de gestão de lidarem com a criatividade e de absorverem demandas que não se submetem a pautas pré-estabelecidas. O maquinário de governo, por definição, fica a dever em dinamismo frente aos devires da realidade.
Há um risco nessa reflexão crítica que precisa ser explicitado. É o de denunciar a ineficácia do funcionamento democrático pela restrição da representatividade e ter o pensamento distorcido em favor da negação do princípio democrático. Para não deixar dúvidas, princípio democrático corresponde ao esforço de viabilizar a organização coletiva com o máximo de participação dos integrantes desse coletivo em sua gestão. Contra os limites da prática democrática, somente é recomendável mais democracia.

Sabemos que, em parte, esbarra-se num problema de escala. A realização ideal desse princípio é inversamente proporcional à dimensão da população de cidadãos. Quanto maior a coletividade, maiores serão as complexidades de seu funcionamento e menores as chances de os cidadãos lidarem diretamente com os problemas relevantes para si próprios.
Nessa circunstância, a instituição de gestores tecnicamente capacitados se faz imprescindível. Daí é que recorremos à eleição de representantes, pois essa é a chance (ainda que limitada) de assegurar que o poder de gestão/governo não se torne domínio exclusivo de especialistas. A eleição seria ao menos um antídoto ao governo de um para muitos.
Democracia representativa permanece, então, como um método de constituição de governos que precisa ser validado contra a tendência de alienação completa dos cidadãos do exercício do poder. Como já foi dito antes, isso é pouco! Permite a atualização do princípio democrático com baixa intensidade. A representação cronicamente exercerá funções contraditórias. Função conjuntiva – deve ligar os cidadãos ao governo e pode fazê-lo numa medida sempre insatisfatória. E função disjuntiva – aparta os cidadãos do poder, fato inevitável.

Esse é o jogo, bem sabemos. Mas nem por isso a representação deve ser recusada, abolida. Deve ser vigiada, cobrada, corrigida, mas, sobretudo, instruída. Esse é um conceito que pouca gente mobiliza e é fundamental. A representação deve ser instruída pelos representados. Consulta ampla, reiterada e plebiscitos são recursos para prover de instrução os representantes. Esse é o antídoto para que o governo também não se cristalize na fórmula de poucos para muitos.
Os meios eletrônicos de comunicação são capazes de potencializar enormemente essas ações instrutoras dirigida aos representantes: formas de reduzir o efeito disjuntivo da representação.

Mas se isso ainda não assegura a participação ampliada de atores sociais diversos em tomadas de decisão, não faz incluir na pauta social temáticas recorrentemente ignoradas pelo sistema político, que alternativa há?
Alternativas que visem à intensificação do princípio democrático supõem pensá-lo para além da dimensão em que funciona como instituidor de governos representativos. É preciso deslocá-lo para a prática societária, para o campo da vida, propriamente dito.

Gestores públicos raramente se ocupam de questões locais. Quando ocorre, é devido a pressões muito determinadas. A microesfera, aquilo que ocorre no nível local é quase sempre condicionado às soluções de âmbito geral, macrosoluções. Essa é a mesma lógica que submete e silencia as minorias no cenário da democracia institucional. Colocar relevo nas questões locais, encontrar para elas soluções originais e adequadas aos implicados significa também fortalecer a voz e vida daqueles que de outra forma seriam tratados como estatisticamente desprezíveis. Como fazê-lo?
Exige protagonismo. Requer disposição para produzir agenciamentos de pessoas, de interesses, de recursos. Implica formar pequenos coletivos em torno de aspirações comuns de alcance local, negociar vontades e concepções, traçar metas, planejar procedimentos, adotá-los e daí avaliá-los e ajustá-los continuamente.

Agir coletivamente nos interstícios do sistema político é a chance de abordar questões autênticas do local com soluções sempre muito mais originais e eficazes.
Essas soluções contribuem propositivamente para a instrução dos gestores. Podem servir como medida a ser multiplicada, podem vir a ser estratégias de formação de redes entre locais e grupos que provavelmente, em circunstâncias diferentes, desconheceriam a existência um do outro. Atores sociais diversos, diferentes em quase tudo, mas semelhantes nas questões que os uniram em coletivos, podem, assim, obter visibilidade política.

Novamente, é preciso ressaltar, a tecnologia informática favorece que grupos constituídos por afinidades de interesse se auto-regulem no intercâmbio de idéias, argumentos, projetos, iniciativas, especialidades e recursos com o objetivo de produzir agenciamentos rápidos e de baixo custo, na tentativa de solucionar questões locais sem se submeterem unilateralmente aos critérios, às necessidades e às estratégias de centros geopolíticos e geoeconômicos dominantes.
Práticas democráticas moleculares que não requerem representação política podem, então, se afirmar como resultado de iniciativas e dinâmicas regionais que sejam ao mesmo tempo voltadas para si e abertas para o mundo.
A escala é, evidentemente, outra. É isso que possibilita a manifestação do discreto, domínio em que a diferença é relevante.

Essas práticas podem ser complementares ao regime de representação democrático ou coexistir a ele. A diferença está na intensidade que resulta de uma e outra articulação: coexistência pode significar convivência concorrente e, portanto, dispersão de energia e produção de tensão. Complementaridade supõe ajustes, cooperação, sinergia em favor de realizações e da distensão.

A instituição escolar pode referenciar-se nos registros da experiência democrática, tal qual refletida até aqui. Pode pensar-se como coletivo, ele próprio protagonista local que equaciona com originalidade a função que lhe institui sentido social. Contribuirá, assim – ao fazer ressoar sua experiência –, para instruir a gestão pública.

Coerentemente, a escola também se empenhará para fazer ecoar as microiniciativas nascidas em seu interior, instrutoras da gestão escolar. Gestão praticada por especialistas e assistida por um conselho de representantes – cuja ação deve ser instruída pela comunidade a partir de reiteradas consultas.

Esse debate pode ser aprofundado com a leitura de autores como:

  • Boaventura de Souza Santos
  • Antonio Negri
  • Claude Lefort
  • Jurgen Habermas

 

Silvio Barini Pinto