Gestão de conhecimentos sob o signo da complexidade
A gestão dos conhecimentos na escola se dá numa rede complexa de intersubjetividades, interações com recursos materiais e imateriais, constituição de linguagens, de sujeitos, de contextos... Tudo no plural!
Para desempenhar essa tarefa bem valeria ser uma mosca. Nada de mosca gigante como a do filme em que o personagem se transubstancia em inseto hipertrofiado e a todos ameaça. Mosca insignificante, discreta ao ponto de nada perturbar.
Eu mesmo, que fique claro, me indisponho até com as drosophila melanogaster, aquelas mosquinhas de frutas. Quando as vejo, não basta espantá-las, lanço sobre elas alguns vaticínios e emito visceralmente um “eu as odeio”. De onde viria, então, a simpatia repentina pela imagem da mosca?
Trata-se de uma descoberta recente, ao acaso, como são as boas descobertas, de que as moscas têm uma faculdade fantástica de enxergar sempre de maneira múltipla. São dotadas de cerca de 1000 omatídeos, pequenos olhos que captam esse mesmo número de 1000 imagens distintas do ambiente em que se encontram. Nem se quisessem teriam como colher uma única informação isolada. Sua fisiologia impõe a percepção do mundo pela complexidade.
Essa potência da mosca talvez permitisse vislumbrar melhor o funcionamento complexo e rico da escola e, valorizando-o em vez de tentar liquidá-lo em nome de paradigmas de gestão ultrapassados, nos fosse possível ajustar a educação aos desafios contemporâneos.
Complexidade tem como matéria prima o heterogêneo. Lidar com a complexidade sem reduzi-la aos esquemas didáticos, sem estripá-la, requer para nós outros, que não somos moscas, primeiro a determinação de fazê-lo, depois, como consequência, o respeito. Digo respeito não como tolerância, não como benevolência, mas como obstinação de olhar de novo (como o significado original de re-espectare) e de novo e de novo... e compor, com esses olhares múltiplos, múltiplas compreensões que não formam síntese definitiva, nem determinam lei ou lógica qualquer. Formam redes instáveis.
Nessas redes nos deslocamos. Somos nós mesmos que organizamos os circuitos da rede que queremos frequentar. Nós mesmos que iluminamos algumas conexões e esmaecemos outras. Somos nós que traçamos significações com os elementos que na rede estão dispostos, produzindo assim conhecimentos. Conhecimentos experimentados, vivos, que recorrem aos modelos clássicos, aos algoritmos da ciência, ao saber acumulado historicamente, mas a partir da necessidade posta pela investigação coletiva circunstanciada a problemas autênticos.
Assim, fazemos educação respeitosa, sobretudo para com a complexidade do mundo. Jeito de ultrapassar a hipocrisia temerária de apresentar às gerações mais jovens a realidade como totalmente controlável, previsível, que caminha para o aperfeiçoamento, em vez de inseri-los e a nós mesmos no sistema aberto paradoxal e mutante no qual podemos deslizar nossas existências de maneira autoral.
A sabedoria está, então, em desenvolver estratégias para lidar com o plural, o movente, o contingente e o acaso de maneira a favorecer as aprendizagens de todos os envolvidos na cena educacional.
A experiência de olhar de novo, de novo, de novo... a nós mesmos, a nossos alunos, as famílias que dividem conosco a educação dos filhos permite a constatação do quanto a diferença é estruturante da realidade e fundamenta as relações. Um biólogo escritor, de quem roubo deliberadamente pensamentos, diz que a humanidade produziu respostas adaptativas infinitas durante sua evolução até aqui justamente porque “fomos nos cruzando, trocando genes, traficando valores. Fomos capazes de sobreviver por causa dessa diversidade”.
Vejam que nesse enunciado há a diversidade biológica e cultural como característica da hominização. Sem hierarquia, o que é mais fantástico!
Na intersecção desses campos (biológico e cultural) se desenvolve a produção de subjetividades, tendo nas múltiplas linguagens os dispositivos em que se apóia. Ter isso claro importa para que não tomemos a linguagem apenas como meio de manifestar conhecimento, mas como instituinte dos sujeitos-conhecimentos que somos. Não precisamos mostrar o mundo aos mais novos. Mas, na linguagem – com códigos consensuados, tateando certas técnicas e subvertendo outras –, construímos com eles sujeitos e mundos variados.
Essa é uma maneira de incitar a viver explorando as potencialidades de todas as situações, de todos os encontros, das possibilidades de nós mesmos.
Leitura e escrita, nessa perspectiva têm significados bem mais amplos. Ler o mundo como enredo não é exclusivo da literatura ou do relato científico. É a condição com a qual estamos no mundo quando o admitimos complexo. É ação que requer uma faculdade humana das mais sofisticadas e com a qual desde sempre contamos (embora a educação pouco a chancele): a interpretação.
Escrever, por sua vez, é extensão da leitura desse tipo. Insatisfeitos com apenas interpretar/criar mentalmente, queremos mais, somos impelidos a nos inscrever com nossas percepções nesse mundo-texto para também sermos interpretados e reconstruídos. Há muitas formas de fazê-lo. Quando controlamos algumas linguagens nos inscrevemos por meio delas. Algumas atitudes comportamentais correspondem a esse impulso por falta de outro recurso de expressão, muitas vezes.
Ler e escrever o mundo como sujeitos-conhecimentos são procedimentos também de afirmação da heterogeneidade dos sujeitos e dos conhecimentos.
Mas como enredar a heterogeneidade?
Está aí uma de nossas maiores questões. Diante dela nos cabe reafirmar a busca e produzir cada vez mais soluções provisórias. O trabalho de enredamento corresponde ao de curadoria. A disposição dos elementos a serem visitados é que vai lhes dar sentidos novos. Para isso é fundamental planejar intencionalidades (no varejo, nada retórico nem mega) e reservar no planejamento espaços para o acaso, as alternâncias, as mudanças de estratégias.
Pois de outra forma, corremos o risco de perceber a complexidade, “diagnosticar” as diferenças sem saber o que fazer com elas.
Retomo a imagem da mosca, dessa vez por outra ótica.
Ela, que tem tantos recursos para olhar e ver o complexo, não é capaz de entrar na rede proposta pela aranha sem sacrificar-se. Claro, ela a acessa sem estratégias. Isso a difere da aranha que sabe muito bem caminhar pela teia, refazê-la sempre que necessário ou mudá-la de lugar. Afinal, ela tem claros seus objetivos. E para alcançá-los, alterna seus métodos.
Desisto de propor a candidatura da mosca para gestora.
Humanos, eu e vocês, sujeitos-conhecimentos, saberemos agenciar em nossos contextos os recursos que precisarmos para formar redes de significação que façam do conhecimento matéria em movimento. Quer eles se encontrem na mais odiosa mosca ou na mais peçonhenta aranha. Bastará estar dispostos a reconhecer potencialidades – mesmo ali onde pareça à primeira vista improvável encontrá-las – e definir e redefinir estratégias.
Silvio Barini Pinto