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Como "flash", vem à memória o fotógrafo Henri Cartier-Bresson com sua capacidade de capturar em uma fração de segundo o universo inteiro em um gesto banal. Mais comum é lembrar da consagrada foto (Place de l’Europe) de um sujeito saltando sobre um piso alagado que reflete sua imagem invertida. O instante em que ele já tirou o pé de apoio do chão e ainda não tocou com o outro pé a superfície, ou seja, enquanto está no ar, suspenso, é capturado pelo diafragma da câmera Leica do fotógrafo.

A complexidade da composição nesse enquadramento dá e dará ainda muito o que falar. Mas a imagem que ajusta as lentes de minhas lembranças não é essa.

Foco numa foto chamada Rue Mouffetard, Paris, que reproduzo.

instantaneo

Especial afeto tenho por essa imagem. Vibro com a altivez do garoto em primeiro plano, em passo determinado, cabeça erguida sabendo que dialoga com um olhar (possivelmente o da câmera) que o desafia. Sua linguagem corporal poderia corresponder a de um pequeno estudante orgulhoso do direito de ter escola apesar de sua origem supostamente humilde (calça larga sustentada pelo cinto apertado, malha curta e sandálias, numa rua com forte presença imigrante). Isso, tivesse ele nos braços bolsa e livros. E a foto seria um clichê da propaganda republicana.

Cartier-Bresson optou pelo não óbvio. O garoto carrega uma garrafa de vinho em cada braço. Seu porte desafiador com isso ganha outros ares. O inusitado desconcerta. A imagem não suscita julgamento, antes ironia. Há ali um jogo. Que pode ter durado o tempo do disparo fotográfico. Não bastasse, uma outra linguagem igualmente complexa se estabelece na triangulação situação-fotógrafo-espectador. E ela sustenta outros jogos curiosos.

Invejo quem tem essa habilidade de apanhar o mundo todo em instante e detalhes. Isso requer sensibilidade. Mas não basta. Para ser bastante a tradução dessa percepção sensível tem que criar linguagem. E sensibilidade requer delicadeza. Falar delicadamente das preciosidades que podem estar no pisca de um vagalume na escuridão e insinuar a relação desse lampejo ao instantâneo fotográfico que, por sua vez, remete ao flash de memória, essa foi a escolha de Priscila, professora da USINA, no texto a seguir. 

Foi assim que li e me emocionei. Vejam como leem e o que lhes causa.

Silvio Barini Pinto

Das miudezas

Um dia, tudo será memória. As pessoas que andam naquela rua, as gentis, as sábias, as más, todas, todas serão memória, o mendigo que passa sem o cão, o ginasta, a mãe, o bobo, o cético, a turista, deus, inclusive, regendo o fim das coisas memoráveis, também será memória. Deus e os pardais. Os grandes esqueletos do museu britânico e todo sofrimento serão memória. Eu, sentado aqui, serei só esses versos que dizem haver um eu sentado aqui.

Antonio Brasileiro

Reaprendi a fotografar. As imagens sempre tiveram importância em minha trajetória: por elas vejo e revejo histórias, redescubro, elaboro, reinvento, ressignifico olhares, escrevo. Estou reaprendendo a fotografar, mas agora de um jeito diferente. Fotografo as miudezas, os detalhes, as pequenas delicadezas que podem passar despercebidas em dias – antes – comuns.

As imagens que registro são pequeninas grandes coisas que arquivo em uma gaveta chamada Memória. Mnemosine. Deusa filha de Urano e Gaia, a junção entre céu e terra. O chão que nos sustenta e nos lembra de nossas raízes e o céu que nos encoraja a voar.

Dessa vez, ao fotografar, deixei de lado a câmera e o celular. Voltei a brincar no quintal da minha avó, em Pirassununga, onde a gente sempre se sentava ao entardecer para conversar. Meus avós nas espreguiçadeiras e nós, netos e netas, em volta, sentados no chão, brincando. Gostava de observar minha avó descascando os legumes para o jantar, meu avô cortando nacos de cana e colocando na bacia pra a gente se esbaldar. Quando ele trazia espigas de milho, era uma festa! Sentávamos todos descascando e tirando os cabelos do milho. Depressa, colocávamos as espigas ao lado de meu avô, que debulhava uma parte para fazer curau e cozinhava o restante para comermos com sal e manteiga. Estas fotografias estão aqui guardadas.

Voltando ao jogo de criança, fotografando com os olhos do espírito, arquivo estas imagens em um HD interno. Lembrei que estas fotos têm como vantagem poderem ser acessadas de qualquer lugar, basta fechar os olhos. Se o arquivo for muito denso, pode-se tocá-lo com os dedos do pensamento e ouvir seus ecos com os ouvidos da alma.
Então, voltei a fotografar.

Observei os gestos de bebê que inicia seus movimentos independentes pelo mundo, ávido por experimentá-lo. As mãozinhas que tudo querem agarrar. A boca que se abre a cada novidade. Eu fotografei a criança devorando o mundo. O mundo da nossa casa, nessa quarentena.

Fotografei telas. Muitas telas. Esse lugar que agora habito mais do que nunca, mais do que eu queria. Até para escrever. Meus textos nascem antes no papel e depois migram para a tela.
Fotografei uma menina que mostrava os cookies feitos no dia anterior, tão bonitos que pude sentir o cheiro e imaginar o quanto estavam gostosos. Fotografei os cabelos raspados e os compridos. Os dentes recém-caídos, abrindo janelas para dentro. Ou os permanentes que estavam despontando. Fotografei um menino que continuava jogando Biribom (uma brincadeira que fazemos em nossos encontros virtuais), quietinho, ensaiando, treinando os movimentos na tentativa de acertá-los cada vez mais. Registrei uma menina que chamava pela professora de circo: “Eu consegui fazer, ó! Um espacate! Você viu?”. Ela estava ali, chamando a professora, como fazia quando as aulas aconteciam no espaço físico da escola e da Usina. Quando o “Bom dia!” era seguido de abraço.

Fotografei a mandinga da capoeira. O menino que fazia macaquinho e tentava ensinar o salto mortal para os amigos do outro lado da tela. (Quem sabe sua voz ultrapassaria os fios, conectores, telas, teclados, tomadas, cabos de fibra para chegar até os poros ópticos e auditivos e instigasse as pessoas a saltar!) Descobri o menino que se sentava com o pai e enxergava novas cores no céu ao entardecer. Tons avermelhados que se mesclavam aos azulados e amarelados e criavam novas cores. Juntos construíam o olhar sensível aos detalhes que deixamos de perceber.

Registrei memórias, histórias, mudanças de espaços. As meninas e os meninos mostram um pouco de suas casas e adentram um pedaço das nossas, configurando um novo cenário que permeia nossos encontros. Em novos cenários e meios de dialogarmos, mas com a vontade constante de cultivarmos nossos encontros pelo afeto, pelo respeito ao tempo e aos gestos infantis, pelo fazer arte (no sentido da expressão utilizada muitas vezes pelas avós para explicar quando uma criança transgredia a norma adulta) e também pela arte, enquanto campo aberto de possibilidades criadoras. Pela busca constante de vivenciarmos experiências libertadoras, estamos reinventando distâncias.

Fotografei (não por fim, mas no início) crianças que colocavam fundos de tela diversos durante nossas reuniões. Praias, florestas, unicórnios, espaço sideral. Crianças ensinando adultos a ficarem de ponta cabeça. A olhar o mundo por outra perspectiva. Crianças foram feitas para se espalhar. Ocupar espaços. Transbordar por aí. E me peguei pensando em quanto estes tempos de pandemia exigem um olhar mais profundo para a infância e suas expressões. Os gestos infantis não se contentam com limites, são espaçosos. Reverberam e assim permanecem.

Reverberam e assim permanecem. Em seus espaços delimitados, criando novas maneiras de se espalhar e expressando-se pelas telas, seus olhares e gestos reinventam-se e subvertem práticas, nos afetando e instigando um novo e mais profundo olhar. Um olhar curioso que deve se permitir o assombro diante desses novos gestos e meios de comunicar. É pela subversão, pelo estar de ponta cabeça, pelo fazer arte que se inventa e reinventa-se novos possíveis e, portanto, novos reais.

Saltos mortais. Dentes caídos e nascidos. Cabelos raspados e compridos. Espacates. Meninas e meninos se espalham e nos convidam a um novo jeito de olhar. As crianças continuam se expressando e inventando novas linguagens em tempos de quarentena. É por meio das linguagens que as civilizações se curam.

Fotografei miudezas. Estou aprendendo a fotografar nesses tempos de quarentena. São gestos e vozes de meninas e meninos, sujeitos que se constituem e se expressam na sua inteireza e, desta forma, colocam-se no mundo como pirilampos. Pequenas luzes, detalhes que reluzem aqui e ali, esses pequenos grandes gestos que reinventam e iluminam meu olhar. Habitam minha memória.

Priscila Brito.