some text
some text

Ensaiar escrevendo é um jeito também de se inscrever no mundo sem fixidez, sem fundamentalismo, sem lugar de chegada. O exercício do ensaio é também um exercício de si. É uma exposição do desejo de estar aí. De dizer "Presente!" à chamada que o mundo nos faz, empregando nisso o repertório cultural/intelectual que cultivamos. Afinal, conhecimento serve mesmo é para ser colocado em movimento, é para ser esticado, torcido, conectado.

Assim é que Gabi Mafud, professora da USINA – local em que temas como tempo, memória e arte são conjugados –, se apresenta e nos presenteia com seu ensaio "Sobre criar asas". Seu olhar se detém sobre seu universo de atuação, em particular. Mas seu perspectivismo mobiliza as questões mais amplas que afetam todos que são sensíveis à reflexão e à beleza, ingredientes básicos da educação.

Sobre criar asas

A memória opera com grande liberdade, escolhendo acontecimentos no espaço e no tempo, não arbitrariamente, mas porque se relaciona através de índices comuns. São configurações mais intensas quando sobre elas incide o brilho de um significado coletivo. (Ecléa Bosi)

Começo esse ensaio imageticamente. Tendo perguntado a duas de minhas ex-alunas da USINA, autoras deste bilhete (que me foi dado de presente no final das eleições de 2017): Por onde começaremos a criar essas asas, meninas?, o que elas escreveram se tornou ícone para mim.

asas e desejos

Figura 1 Esse bilhete também encontra-se no Epílogo e na capa de minha dissertação de mestrado: Experiências de vida, formação e atuação de pedagogas: ARTE/VIDA em dois atos. ECA (2019).

Naquela época, estávamos todas tomadas pelas eleições presidenciais, mal sabíamos que, dois anos depois, estaríamos vivendo uma pandemia mundial com um isolamento que nos impede de fazer e viver tantas coisas preciosas. Esse bilhete é um arquivo importante da minha memória de professora. Ainda guardo o original como uma espécie de tesouro muito valioso. Acho que vale dizer que, no instante em que ele foi escrito, minhas alunas tinham entre 9 e 11 anos.

Volto, pois, à eterna mania de perguntar sobre as coisas. Estou tentando encontrar o tal brilho do significado coletivo da memória, tal como a professora Ecléa Bosi sugere no trecho que escolhi como epígrafe. A palavra memória tem ressoado de várias maneiras em minha cabeça inquieta: Como a escola, espaço coletivo e presencial será capaz de construir processos significativos em nossas memórias em tempos de isolamento? Seremos capazes de criar tais asas e sobrevoar as ruínas?

Longe de tentar resolver essas questões nas linhas que escrevo, busco ampliar esse diálogo com meus pares, com as famílias e toda a comunidade que nos cerca.

Aqui, procuro tecer da memória alguns fios que possam se entrecruzar, se enlaçar, ou não, mas que possam nos orientar pelo labirinto, que possam nos ajudar a compreender como essa experiência tem acontecido e nos movido. Fomos jogados em um abismo de incertezas, foi preciso gestar e parir, ao mesmo tempo, uma ação abrupta, que parece operar em um tempo esquisito. O coletivo da escola está constantemente em uma espécie de ebulição, procurando encontrar maneiras de significar todo o acúmulo de experiências que construímos na escola. Como (re)criar as relações já existentes pautadas pelo afeto, pela presença e pelo olhar através das telas eletrônicas?

Fiz uma pausa para ouvir o relato de uma colega: ela contava pequenas pérolas, disse que uma criança quando viu sua imagem no computador, sorriu e abraçou o aparelho como fosse ela própria corporificada. É bonito ver um gesto de tamanho carinho, ainda que de maneira bem estranha - o abraço é a intenção de celebrar esse encontro. Ele ainda há de acontecer presencialmente!

Tive vontade de começar a escrever depois de um encontro com colegas da USINA, Educação Infantil, 1º e 2º anos do Ensino Fundamental. Naquela manhã, depois de martelar mil vezes na minha cabeça a enorme dificuldade e impossibilidade que é pensar o ensino pela arte pautado pelo viés da tecnologia, dos encontros mediados por câmeras e vídeo, um simples detalhe, que na verdade, pode não ser tão simples assim, me fez desviar o raciocínio: pensando na falta, olhei para a possibilidade. Ali, consegui me acalmar de alguma maneira e compreendi que aquelas ferramentas jamais irão substituir a escola presencial. Pronto, ufa, é outra coisa que estamos fazendo. Ela, a tal tecnologia, é apenas uma possibilidade do presente e do agora. Apesar de ser uma situação completamente desconfortável e contraditória, ela tem nos ajudado a manter viva a chama dos encontros, ainda que esquisitos. Comecei a perceber como as meninas e os meninos traziam ainda suas curiosidades, seus afetos, suas vontades nessa nova configuração da experiência escolar. Às vezes, queriam falar, outras vezes, não queriam sequer serem vistos. Mas estavam ali, tendo a possibilidade de escolher o que queriam e o que não queriam fazer. A escolha sempre foi um dos princípios tão marcantes de nossas práticas educativas, e continua presente mesmo com esse distanciamento.

Nossa especialidade sempre foi e permanecerá sendo o ensino presencial, os encontros, os diálogos e os abraços. Justamente por isso, estamos sendo capazes de extrair uma matéria preciosa, diferente, inesperada   para essa situação.

Na USINA optamos por criar Lampejos1 para nos apoiar na invenção de um novo tempo de ensino. Estamos cuidando de como a memória tem sido produzida em nós e em nossas crianças. Essa palavra passou a habitar o fio condutor de muitas de nossas proposições de ensino.  Estamos interessadas em saber como o tempo tem se manifestado nesses dias que misturam vários sentimentos. As memórias coletivas têm acionado preciosidades inacreditáveis. As falas e as trocas com a nossa turma fazem saltar em nossos olhos a maneira como os estudantes estão narrando suas vidas nesse tempo.

Nos encontros à distância, são vários os atravessamentos que me convidam a compartilhá-los. Um estudante do grupo da manhã, frequentador da USINA  de todos os dias, está na escola desde o 1º  ano e é filho de nosso artista inspetor; ao ser indagado por uma de suas professoras para saber como ele estava e o que tem feito nesses tempos de quarentena, ele respondeu: tenho observado o céu com meu pai no fim da tarde e suas diferentes cores. Esse pequeno gesto da memória me vez recordar que, no ano passado, fomos com um grupo de crianças da USINA à exposição do artista plástico franco-venezuelano Carlos Cruz-Diez chamada A Liberdade da Cor. A exposição nos convidava a experienciar espaços onde as cores pintam os ambientes: pelas luzes coloridas, nossos corpos e nossas passagens eram tingidos. Descobrimos que o artista escolheu pesquisar cores, criar ambientes, espaços e fazer delas o grande motor de suas criações, após pintar um quadro que retratava de maneira realista os horrores de uma guerra civil que assolava a Venezuela no século XX. Resolveu desviar os caminhos e da pintura realista, e passou a criar mundos coloridos de maneira tão radical que a cada espaço as crianças iam se construindo de forma singular e inesperada. São elas as cores do artista para o aluno que observa o céu. Ele resolve escolher compartilhar com seu grupo a narrativa dos momentos preciosos construídos com seu pai, o elo que encontra para contar o que tem feito e aprendido nos últimos tempos. Vale dizer que nossa investigação sobre a interação das cores vai continuar.

Outro exemplo marcante: ao ouvir as memórias de infância da sua professora, um garoto, recém-chegado à escola e à USINA, movimentou seu pensamento. Nos contou como foi a experiência de aprender a andar de bicicleta na rua de casa. Um gesto tão simples, tão comum, mas que naquele espaço ganhou uma dimensão valiosa. Era a maneira como ele narrava que fazia dessa corriqueira aventura infantil, algo tão especial, diferente e mágico. As demais crianças foram compondo esse mosaico. Um determinado aluno que há tempos está conosco, desde que começou sua vida escolar no Colégio São Domingos, trazia outra narrativa fantástica. Aprendeu a andar de bicicleta rapidamente sem rodinhas e logo começou a fazer acrobacias inacreditáveis. Outra pequena, por sua vez, nossa aluna desde o ano passado, quis, então, ensinar uma brincadeira de mão, tão antiga, que pertence aos tempos da infância de sua avó, atravessou a infância de suas professoras e, agora, a dela. Toda essa história é narrada de seu apartamento, do seu quarto, onde todo o universo daquele momento de sua infância está guardado.

Quantos afetos são tecidos neste caminho de novas possibilidades diante da imposição do isolamento. Tecer memórias é uma forma de fazer com que nós, todo o coletivo do colégio, possamos vivenciar essa experiência constituindo uma subjetividade forte e potente, capaz de sempre poder imaginar. Cuidar da memória, da experiência, é uma possibilidade dos cuidados de si em nosso tempo histórico. As crianças sabem das coisas e elas sempre nos trazem referências de como o conhecimento tem se aflorado, pela sensibilidade, tal como aquele presente que ganhei nos tempos difíceis das eleições e que se tornou um tesouro que sempre aciono quando preciso.

Narrar as brincadeiras, os universos familiares, as pausas, e as descobertas que ocupam esse espaço inventado dos tempos de quarentena, evoca uma possível forma de repensar como a educação, o ensino e a escola estão chegando a nossas alunas e alunos.

Mas esperem, é preciso marcar forte uma coisa: nada, nada disso substitui o espaço escolar, o espaço físico que provoca encontros, a presença das aulas, das relações, os deslocamentos, todos os afetos e todo o conhecimento que criamos em rede neste espaço.  A escola é e será um lugar fundamental para reelaborar e reconstruir nossa subjetividade na pós quarentena. É preciso garantir esse espaço, essa situação há de passar, como tantas outras que já se passaram em nossa história humana. Cuidar desse tempo, do que chega e do que nos atravessa, é uma tarefa importante, uma proposição: a criação de novos espaços como possibilidades de novos acontecimentos. Talvez olhar para esse céu tão colorido e poder imaginar as asas que ganharemos para voar. Imaginar essa possibilidade só é possível porque brincamos, reinventamos outras vidas, porque essa, por si apenas, não nos basta. A escola, a arte, a ciência e o conhecimento nos ajudarão a (re)construir, a partir das ruínas, novos mundos possíveis. Talvez, então, inventaremos as mais fortes asas para levantar voos inimagináveis.
 
Gabriela Mafud
Professora da USINA
São Paulo, outono de 2020.