O dia marcava início de Ramadã, o mês sagrado do Islã. Dizem que ele celebra o momento em que o anjo Gabriel encontrou o profeta e ordenou que escrevesse em nome de Alá. Curiosa coincidência: o horário era um daqueles que os cristãos chamam de Angelus, ou hora da Ave-Maria, e celebra o anúncio a Maria de que ela concebera o filho de Deus – feito por ninguém menos que o mesmo anjo Gabriel. Não bastasse, era uma sexta-feira e o sol se punha – hora também das orações de Shabat, em que os judeus celebram o descanso após a criação do mundo e a libertação de seu povo da escravidão no Egito.
Movido talvez pela convergência de tantas energias místicas da ocasião, Luís, o autor do texto que segue abaixo – ele mesmo estudioso da cultura grega clássica –, criou uma narrativa poética para se comunicar com alunos e familiares do Ensino Médio do CSD que resultou numa espécie de prece laica.
Resolvemos dividi-la com demais alunos e familiares do Colégio, ainda que com atraso. Mas o que é uma semana numa rotina de confinamento social? O ministro da Justiça do atual governo havia se demitido na manhã do dia da publicação original e mostrado publicamente o que havia debaixo do tapete cerimonial do Planalto. Isso faz somente uma semana? O tempo expõe-se nessa crise com a elasticidade que lhe é própria. Nós é que não víamos...
Prece, lembremos, é a ação pela qual afirmamos a precariedade como condição de nossa natureza...Tomara que apreciem!
“São Paulo, 24 de abril de 2020 | sexta-feira!
Completamos, hoje, nossa 6ª semana de quarentena...
Saúde e graça a todos!
Tantas vezes me deparei, em contextos familiares, com esta singela saudação: saúde e graça! E, talvez, por (me) ser tão familiar nunca me aventurei a explorar no pensamento, para além de sua original conotação religiosa, o gosto específico que esta junção de palavras produz em mim! Seja como for, repasso, hoje, a vocês esta familiar saudação: Saúde e graça!
Sim, saúde! Sempre. Nada melhor que uma sexta-feira para promovermos um brinde à nossa saúde! Mas que não percamos a graça! Sobretudo, em dias como estes. Nada mais cruel que uma vida (ou um mundo) sem graça! Sem graça, adoecemos! Por isso, junto com a saúde, desejo-lhes também a graça!
Cá estou (novamente) diante da tela, ao som das pungentes panelas que ressoam em minha janela, a meditar, nesta sexta-feira, a minha quarentena...
E para dar algum rumo aos pensamentos, tomei de empréstimo este célebre e incômodo poema de Drummond e apliquei-lhe um pequeno reparo, a fim de adaptá-lo à dinâmica de nossos dias:
No meio do caminho tinha uma tela
tinha uma tela no meio do caminho...
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma tela
tinha uma tela no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma tela.
E a tela tão celebrada em nosso tempo torna-se hoje uma pedra no sapato da educação! Ou, se preferirem, uma pedra de tropeço, uma vez que, por este caminho, é praticamente impossível ir e vir sem topar com ela! Seja como for... a pedra que os pedreiros rejeitaram tornou-se a tela angular! Sobre a qual edificam-se outras tantas igrejas...
Mas... ruim com ela, pior sem ela! Assim me dizia um colega (que acabo de inventar) e, pelos avessos da lógica, de algum modo me convencia... “imagine esta pandemia/ esta quarentena sem a tela!”
Santo Drummond, que me soprou estes versos, socorrei-me!
Aliás, falando em pedra e poesia (e graça) recordo-me, num instantâneo da memória, das inspiradoras palavras de Adélia Prado, em entrevista concedida ao professor e amigo Luiz Jean Lauand:
“Às vezes Deus me tira a poesia e eu olho pedra e vejo pedra mesmo!”
Acho isto de uma engenhosidade espantosa! Quase não conheço melhor síntese do papel da poesia no mundo que a que se desprende desta constatação. A poesia tem algo que ver com uma certa capacidade de enxergar e fazer ver.... Homero, que não sabemos ao certo se existiu, mas sabemos que era cego, conhecia bem o sentido profundo destas palavras! Antes, nada! Mas após meia dúzia de versos... um mundo inteiro instaura-se em nós com a sua escandalosa densidade! E assim, milagrosamente, como uma espécie de download, o poema faz “baixar” em nosso sistema operacional um universo de conexões possíveis e inusitadas!!
Seja como for, hoje Deus também me tirou a poesia: olho tela e vejo tela mesmo!
E, sem ter muito pra onde ir, cá permaneço diante dela e da outra janela, ao som das panelas que batem e de tantas outras que restam mudas. E no pragmatismo do relógio que me assiste e me assusta, penso com minhas teclas esta ideia: Talvez estejamos mesmo, como nunca antes na história deste país, necessitados de poesia! Para exercitar estas nossas retinas tão fatigadas a olhar pedras... e ver caminhos...
...para além, através, por entre, ao redor...
E como diria um bom baiano (meu amigo), para transcender e profanar pedras e telas...
No meio da pedra tinha um caminho
tinha um caminho no meio da tela...”
Luís Fernando Weffort