Surpresos, os presentes se voltaram à minha triste figura, desconcertada pela ingerência indevida, que estancou na soleira. O professor não. Altivo, reagiu como se aquilo não o perturbasse. Indagou sobre meu interesse. Balbuciando um francês medíocre, respondi que precisava de sua orientação. Era o último dia de trabalho na Universidade antes do recesso de fim de ano. Manifestou um interesse difuso em meus balbucios e pediu que o encontrasse na sua sala, noutro prédio, às 17h.
Uma eternidade passou entre o início da tarde e o horário marcado. Fui. Lá estava ele à minha espera. Disse ter se interessado por eu ser um professor brasileiro. E doucement insolent – apenas depois foi que entendi que havia me chamado de atrevido, com muita classe. Não se lembrava de ter tido uma sessão ritual na Sorbonne interrompida por um estranho, como eu fiz. Juro que o fiz por desespero. Se não o encontrasse naquele dia, talvez nunca mais. Ele havia combinado com a família de viajar para o campo justo no horário que me atendeu. Adiou. Raríssimas vezes contei com tanta generosidade pessoal e intelectual gratuitamente.
Ali, na École des Mines, passamos um fim de tarde e começo de noite naquela sala acanhada para a estatura de seu ocupante, em todos os sentidos. Não apenas me escutou com atenção, me orientou autores e leituras. Cedeu contatos telefônicos de pesquisadores que poderiam me ajudar e descreveu com o detalhismo de um Rembrandt em quais estantes e em qual posição nelas eu encontraria obras que me recomendava. Me vi enternecido e com uma lista que correspondia à bibliografia suficiente para uma dissertação. Quando lhe disse que meu interesse não tinha a ver com carreira acadêmica, mas com o ensino das Ciências por um viés que não fosse apenas técnico e que meu campo profissional era a Educação, em vez de se frustrar ele me estendeu a mão – naquela época ainda era possível isso – e disse: “Brasileiros, vocês são surpreendentes. Tenho esperança que vocês ainda venham a nos oferecer saídas para esse mundo fundamentalista e pleno de catástrofes ecológicas. Quem se interessa pelos meios, pelas mediações e não só pelas técnicas e resultados poderá ser mensageiro de um amanhã esperançoso”.
Ainda hoje ressoam as palavras de Bruno Latour em minha memória – e já se passaram duas décadas desde esse encontro. Para ele, talvez apoiado nas marcas do pensamento sociológico, eu seria representante de um tipo social, uma linhagem: terceiro mundista, educador e, por isso, portador de alternativas. Quisera.
Sua reflexão expõe os meandros do fazer científico com as concessões éticas, cumplicidades, compromissos com financiadores, negociações entre “camaradas” acadêmicos... Nessa vertente, revela os traços humanos da vida nos laboratórios, nem sempre motivos de orgulho para quem reflete com distanciamento.
Trata também de como as tecnologias têm o poder de introduzir algum tipo de moralidade em seus usuários, de condicionar-lhe os gestos, de alterar suas condições atencionais, de formatar o pensamento. Quem observa apenas o funcionamento e os resultados das ferramentas empregadas nas tarefas mais comezinhas nem sempre atenta para os gestos que por ela são decalcados nos sujeitos usuários. Dito de outra forma, as tecnologias são produtoras de subjetividades. Não têm nada de neutralidade.
Ter isso em mente não implica negar as Ciências nem as Tecnologias. Envolve é a atenção vigilante para não sermos facilmente capturados pela ideia comum no mercado de que o par ciências/tecnologias equivale a progresso e que isso o tornaria mercadoria inquestionável. São facilmente associadas à evolução civilizacional. Mas qual civilização? Progresso em qual direção? Apenas produtiva?
Bom, Latour e eu hoje envelhecemos. Grupo de risco. Tentei trazê-lo pela memória também para homenageá-lo na sua condição subjetiva. Ele me foi um mensageiro sem qualquer tipo de interesse objetivo. Intermediou virtualmente muitas leituras e várias conversas com gente indicada. E atribuiu isso ao tipo ideal, educador periférico, que eu encarnava em sua frente. Meu relato sobre ele é também uma tentativa de me livrar desse estereótipo e de seu peso missionário. Devolvo-lhe o reflexo no espelho.
Pois bem, nas últimas semanas um artigo seu circulou pelas redes sociais: “Imaginando gestos que barrem o retorno ao consumismo e à produção insustentável pré-pandemia”. Recomendo a leitura: Clique aqui.
Sabem por quê? Por que ali ele faz exatamente o papel que projetou em mim um dia. Ele é o sujeito esperançoso de uma mudança que agora, diante da interrupção produzida pela pandemia, se faz, além de urgente, possível. Não farei mais spoiler da leitura.
Apenas conto que há no artigo um questionário que ele propõe aos leitores no final.Trata-se de um exercício de ensaio de si e do mundo que virá após pandemia.
Já que nos aproximamos da Páscoa, cujo significado em tantas místicas é a renovação, lanço a vocês a provocação para esboçar o desenho do amanhã esperançoso.
Sugiro que, a partir de Latour, cada um faça um novo questionário pessoal com a enquete que lhe parecer mais pertinente. ‘Bora pro futuro?!
Boa noite. Felicidades!
Silvio Barini Pinto