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O filósofo Edgard Morin, já quase centenário, faz festa no pensamento. Um dos precursores da sistematização do conceito de complexidade, ele acredita, com otimismo, que daqui para frente teremos uma maior consciência da condição planetária de nossa existência, da perspectiva de que todos constituímos uma mesma humanidade, de que as diferenças são tão somente nuances de uma essencial vida comum. A crise atual em sua hiperdimensão traria essa re-ligação onde antes havia se estabelecido o sectarismo, o chauvinismo, a discriminação. Quiçá!

Aqui entre nós, podemos perseguir as pistas mais modestas de algumas alterações visíveis.

Uma criança se ressente de não poder encontrar mais os amigos que moram no mesmo prédio. Mais ainda, pelas notícias circuladas entre os adultos das famílias em questão, ela sabe que há um clima de tristeza entre os amigos. Muitos deles não têm como ela um canal de contato com os colegas de escola, nem propostas interessantes para realizar.

Imagina-se que nessa circunstância, ela logo lançaria mão de algum dispositivo de mensagens eletrônicas e quebraria o isolamento imposto. Mas não! Ela passa a se valer de uma forma incomum em nossos dias para reestabelecer os contatos. Passa horas de seus dias escrevendo cartas. Uma para cada criança do prédio. Nelas, além dos assuntos pessoais e das brincadeiras que ela mesma inventa, cria atividades para eles realizarem. Apoia-se na referência do trabalho que sua escola vem fazendo. Sente-se mobilizada para cooperar com os amigos. Para enviar as cartas, pede auxílio a sua mãe. Mas antes passa álcool gel nos papéis e envelopes. Solicita que a mãe coloque luvas e máscara e leve suas missivas de porta em porta, diariamente.

Duas atitudes dessa criança chamam a atenção: primeiro é a sua consciência do comum. Dessa instância que constituímos com outros que não são da mesma linhagem familiar. Essa dimensão instável que depende do cultivo relacional. Chama muito a atenção que a forma que ela escolhe para fazer o tal cultivo é a cooperação. Há nisso um traço ético que apenas é aprendido pelo hábito, pelos modelos de seu hábitat – nesse caso, o doméstico e o escolar.

Para além disso, salta aos olhos a opção pelo modo adotado: escrever cartas, enviá-las, esperar retornos incertos e demorados constitui uma modalidade que tem seus encantos. Acabo de ler um livro em que o personagem espera a vida toda uma carta da mãe que se distanciou dele na adolescência. E isso o coloca numa ansiedade produtiva: inventa para si mesmo as cartas que ela teria escrito e que não teriam chegado. Errou o número do CEP, talvez. Não conseguiu ir até o correio por encontrar-se ocupada demais, quem sabe. Não importa, ele as inventa e assim lida com a ausência de correspondência, por anos seguidos.

A pequena a que me refiro investe nesse formato que se encontra em desuso. Será pelo fato de ela sentir que há uma saturação comunicativa pelos meios digitais? Será que o retorno quase imediato de nossas emissões abrevia também o prazer de imaginar como foi a recepção do destinatário a nossa mensagem? Será que o tempo de resposta à carta (e a incerteza dela) ao se alongar não nos favorece a construção mais rica da percepção do outro? Ao chegar uma resposta a esse tipo de comunicação, a alegria não se compara à reação ao toque do celular que anuncia mensagem recebida quase imediatamente à nossa chamada. A vida assim ficou mais sem graça.

Essa criança abre-nos um possível. Coloca-nos no cardápio uma opção para sairmos novos dessa condição de confinamento. Não significa que passaremos a nos corresponder por cartas. Mas ela nos traz à lembrança um outro jeito de conduzir nossas relações. Ela nos faz lembrar que não precisamos tanto atropelar o tempo. E não o fazendo, viver mais intensamente as fantasias criativas, as invencionices que nos transportam, as expectativas que incluem o outro.

Novo vestígio: dessa vez um pré-adolescente que se mantém conectado com o grupo especial de estudos de matemática oferece um material em suporte digital para os demais alunos da série em que aborda as pesquisas que fez sobre o conceito geométrico de perspectiva.

Dimensões, as faces da realidade – esse é o nome de sua apresentação. Ali onde comumente se procuraria explicitar os conceitos geométricos que são subjacentes a seu assunto focal, ele propõe antes de tudo pensar que a geometria cria uma das possibilidades de percepção do real. E parte para as demonstrações de como é possível construir essas percepções a partir da concepção de espaço e da atribuição de dimensões a esse espaço. Nessa altura, lança máximas filosóficas como“ver é um termo relativo, podem existir infinitas dimensões” (...) “O espaço percebemos com a visão, mas também com a audição” (...) “O tempo percebemos devido aos ciclos internos”... e por aí vai, até que sua pesquisa chega ao artista Escher que promove uma verdadeira revolução dos sentidos com seus jogos perspectivos, uma forma de tratar conceitos matemáticos metaforicamente.

Esse aluno mobiliza a geometria, trata-a para além das fronteiras disciplinares da matemática, pensa-a filosoficamente, reconhece na arte de Escher uma espécie de poesia.

Sua apresentação é mostrada para os demais colegas em encontro virtual. Os recursos empregados são quase todos gráficos com animação.

O domínio da tecnologia, nesse caso, foi colocado a serviço da investigação, da problematização do investigado, do tratamento reflexivo do corpus reunido nesse percurso. Os atravessamentos disciplinares que promoveu resultam numa rede que faz todos os conteúdos mobilizados adquirirem significado vertical, profundo. Esse pré-adolescente está exercitando o pensamento complexo.

Mais que isso, ele o faz num grupo de trabalho que tem como meta preparar-se para ensinar aos demais. Não bastasse todas as operações cognitivas que o trabalho proporcionou, para chegar aos colegas precisou fazer uma transposição didática de todo o experimentado. Isso não envolve apenas técnica, implica a determinação de cooperar. De novo, chegamos ao ponto que nos articula de maneira especial: trata-se de comportamento ético.

Esses personagens são reais. Vivem em São Paulo. Estudam no CSD. Passam pelo isolamento compulsório. Passam. E nos dão motivos para pensar que o novo que se instalará depois da passagem valerá a pena.

Silvio Barini Pinto