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Abro outra janela, a ver se encontro rumo para meus pensamentos ou tomo por empréstimo alguma razão alheia. Por afinidade e/ou interesse, deparo-me (já numa terceira janela) com a genialidade de Marcel Marceau, e perco aí uns bons prazos de minha ordinária quarentena a observar o mestre da invejável técnica de andar sem sair do lugar.

Não sei se por intermédio da arte de Marcel Marceau, ou se pela enorme repercussão dos estudos de Étienne Decroux (seu professor e mestre), ou se por influência do cinema mudo, o fato é que a pantomima e o mimo ganharam significativo impulso e expressiva relevância na discussão teatral do século XX. E na eufórica busca pelo estudo, compreensão e domínio desta técnica, muitos seminários, demonstrações e debates foram realizados para esse fim. Dentre as histórias que circulam..., conta-se que num destes encontros, no qual se perfazia (com grande pompa), para uma privilegiada plateia de artistas, uma demonstração técnica do “caminhar parado”, um velho palhaço italiano, movido pela peculiar ironia de seu ofício, propõe ao ‘caminhante’ a intrigante objeção: Bellissimo, ma dove va?

E eu, que também andava em círculos com a minha questão, julguei haver neste pequeno episódio (ou anedota) da crônica teatral moderna, um ponto de fuga para uma breve (demasiado breve) reflexão sobre os usos da tecnologia na educação.

Sim, a técnica (em si) é belíssima! Mas, do ponto de vista da narrativa (ou, se preferirem, de um ponto de vista dramático), aonde ela nos leva? Eis a questão!

Não há, evidentemente, como negar a importância (e, no caso referido, a relevância cênica) da técnica. Mas, separada da obra, ela nos diz muito pouco. A boa técnica (parece-me) será sempre aquela que melhor favorece a finalidade (o sentido) da obra. Ou seja, ela está a serviço da obra. Ela é meio e não fim!

Transposta para o nosso cenário, esta questão nos impõe uma relevante reflexão sobre o atualíssimo drama da educação em tempos de quarentena: a tecnologia (em si, ou isolada) não dá conta do sentido.

A preocupação excessiva com os meios (sem a devida e refletida referência aos fins), em muito pouco tempo, pode nos levar a operar sob a máxima funesta de moldar concepção e conteúdos segundo a lógica dos aplicativos/plataformas, ao invés de escolher os aplicativos/plataformas segundo a lógica das concepções e conteúdos.

Sobre este ponto, parece-me preciso o comentário feito por Baudelaire em um capítulo específico de uma coletânea de artigos de crítica de arte publicada postumamente em 1869 e que, aqui entre nós, ganhou o título de Sobre a Modernidade.

O conteúdo não contradiz o título, trata-se efetivamente de uma análise crítica da modernidade, mas com a graça e o gênio poético Baudelaire. E embora o livro tenha como objeto de análise a pintura, entre um sopapo aqui e um solavanco ali, o poeta dedica quase meio parágrafo para falar da arte do ator. Diz ele:

“(...) Advinha-se a mesma analogia no exercício da arte do ator, arte tão misteriosa, tão profunda, vítima nos dias de hoje da confusão das decadências. Frédérick Lemaitre desempenha um papel com a amplitude e a grandeza de um gênio. Por mais que sua criação esteja semeada de detalhes luminosos, permanece sintética e escultural. Bouffé compõe os seus papéis com uma minúcia de míope e de burocrata. Nele tudo brilha, mas nada transparece, nada quer ser guardado pela memória.”

Nesse brevíssimo compêndio sobre a arte do ator, espanta-me, sobretudo, a afirmação: Nele tudo brilha, mas nada transparece... Mas o que me traz este espanto original não é a relação desta frase com o teatro, e sim com a educação.

Assumindo esta perspectiva, a função da tecnologia não é ser vista, mas fazer ver. Não a si própria, mas através de si. O sentido é captado através dela, mas o sentido não é ela. Ela não é a mensagem, mas a mensageira. Por isto, no âmbito da educação, é imperativo que o seu uso esteja vinculado a um projeto. Pois mesmo que tenhamos em mãos (e com pleno domínio) as mais avançadas tecnologias disponíveis no mercado, isto de nada nos adiantará se não tivermos o que dizer aos nossos alunos. Este tem sido até aqui o nosso ponto e o nosso compromisso ético, ‘ter o que dizer’ e ‘dar o que pensar’. Nossos investimentos (materiais e intelectuais) sempre priorizaram este pressuposto.

Ouço, das profundezas de minha solidão, uma voz a objetar-me: Como assim, “se não tivermos o que dizer”? Os conteúdos não são os mesmos? Nosso problema (todo ele), neste momento, parece ser apenas com relação aos meios!!! E antevejo, no horizonte de um espelho imaginário, uma série de expressões de rostos e movimentos de cabeça a concordar com esta observação!

E recorro, uma vez mais, à pantomima.

Quando se dá a ascensão (ou, se preferirem, a explosão) do cinema falado, Charles Chaplin permanece, para a incompreensão de muitos, um bom tempo em silêncio. Para ele, talvez o maior gênio do cinema mudo, não se tratava apenas de uma mudança de plataforma, de uma ampliação técnica de possibilidades e recursos expressivos, mas de uma mudança profunda na concepção estética e poética de sua arte. Implicava, sobretudo, abrir mão de sua mais expressiva plataforma, o Carlitos! E ele levou anos para realizar esta transposição, para reaprender a falar!!

Do mesmo modo, não se trata, para nós, apenas (ou tão somente), de uma mudança de plataforma, mas de uma desafiadora transposição (ou transcriação) conceitual, estética e poética de nosso modo (festivo e afetivo) de atuação educativa para um domínio (ou ambiente) virtual, excessivamente marcado pela objetividade, eficiência e dinamismo das relações.

Clarice Lispector, em uma de suas poucas entrevistas e com o mau-humor que lhe era habitual, nos diz: “nunca tive um problema sequer de expressão. Meu problema é muito mais grave, é de concepção!” Plagiando Clarice, ouso dizer... Não temos também nós nenhum problema específico com as tecnologias (sejam elas quais forem). Nosso problema é muito mais grave. É de concepção!

Ela (a tecnologia) deve estar a serviço de uma concepção e de um projeto de educação, e não o contrário. A inversão destes papéis pode nos levar a rumos indesejados, ou, simplesmente, a caminhos que não levam a lugar nenhum.

Luís Fernando Weffort