Hoje ouvi um áudio de uma aluna do Ensino Médio fazendo uma indicação para um professor. Ela dizia que depois de ler o texto enviado e assistir à aula de um certo professor pelo vídeo, pensou em propor para ele a leitura de um livro que lhe foi indicado no ano passado por outro professor do CSD. Na época, dizia ela, começou a leitura mas não foi fisgada, fez pouco sentido. Deixou-o meio de lado. Agora, quando pensou naquilo que foi proposto como leitura e reflexão pelo outro professor de outra disciplina, remeteu-se àquele livro novamente e ele fez todo o sentido. Funcionou como uma dobradiça entre o curso de um professor e o do outro. E dignou-se orientar a leitura de um para outro professor e criou assim um diálogo que talvez nem ocorresse não fosse sua capacidade de articulação das coisas.
Foi assim que pensei também em um texto que produzi há um tempo para falar metaforicamente do desafio de construir currículos moventes, vivos, que transformem o dito “conhecimento escolar”, tão cartesiano e desprovido de conexões. Ouso propor a vocês essa leitura:
A ordem das coisas
“Um homem se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos, povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naus, de ilhas, de peixes, de moradias, de instrumentos, de astros, de cavalos, de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu próprio rosto.”
J.L.Borges
É possível que todas as tentativas de saber façam parte do cronicamente insaciável desejo de ordenar o mundo. Criar sistemas lógicos, explicativos, estéticos. Vontade de conferir sentido à totalidade do experimentado/experimentável.
Assim procede um catador nas ruas. Erra quem imagina que sua lógica é apenas funcional. Ele seleciona criteriosamente os objetos que recolhe do manancial de detritos que é a cidade. Certamente tem uma capacidade de abstração maior que a da maioria, pois consegue olhar para as coisas e enxergar outras, tem a atenção preparada para pensar novas utilidades para os descartes. Já ao arrumar os objetos em seu carrinho ele ensaia criativamente novos sentidos: põe uma coisa ao lado de outra e já percebe potencialidades na combinação. Motivo de prazer.
Rosângela Maria, estagiária de psicologia sob supervisão da junguiana Nise da Silveira, descobriu num asilo Arthur Bispo do Rosário. Ele resistia à loucura que a instituição lhe decalcava fazendo bordados com os fios desfiados do uniforme. Intercalava aos pontos elementos discretos disponíveis em seu universo físico limitado com o objetivo de ultrapassar suas paredes e construir com a imaginação universos ilimitados. Ela lhe deu corda e ele construiu obras de arte de extrema significatividade. Mais que isso, criou ordens possíveis para as coisas no mundo. Pode-se dizer, reconstruiu o mundo ao seu redor. É possível que dessa forma tenha aplacado seu sofrimento, tenha feito vazar a sensibilidade incontível que o conduziu em certo momento ao asilo.
Os poetas na antiguidade grega apresentavam na poesia o conhecimento do mundo. Reuniam em suas narrativas metafóricas formas de compreender, julgar, se orientar. Guardavam as histórias exemplares na memória. Porém, imediatamente antes de iniciar a recitação de um poema, evocavam as musas. Essas lhes traziam a inspiração que necessitavam para fazer variar o enredo. Fazer embaralhar lembranças com esquecimentos. Assim, recitações de um mesmo poema recombinavam elementos e contavam histórias distintas de acordo com o trabalho de edição que supostamente as musas realizavam.
Não por acaso essa é a natureza dos museus. Organizar as exposições dos acervos que lhes pertencem é um exercício inspirado nas proezas das musas. Ao adotarem critérios moventes para a exposição das obras, ao trocarem as vizinhanças entre elas produzem novos sentidos e muitas vezes percepções estéticas inéditas. E são praticamente infinitas as variações possíveis em uma coleção.
A escola oferece também ordens para as coisas. Sistemas de explicação. Modos de pensar e agir no mundo. Podemos ensinar a olhar as coisas e enxergar outras. Convidar a colher variedades e a criar critérios móveis para organizá-las. É instigante tecer juntos conceitos, ideias, formas, experiências, desejos utilizando para isso os fios com que a inércia institucional tenderia a nos imobilizar. Espocamos nossas sensibilidades. Pedimos às musas que façam penetrar a diferença em nossas repetições. Tem sido essa nossa chance de incluir o mesmo para construir sempre o novo. Promover sempre novas relações, combinações, aproximações e paradoxos. Ao fazê-lo, dizemos que enredamos os saberes e os sujeitos envolvidos na situação de escola.
Com esse procedimento de articular e rearticular os conhecimentos e os sentidos sempre de novo, havemos de nos preparar sempre e melhor para afirmar as heterogeneidades que emergem dessa ação.
Tornar produtivas as diferenças manifestadas na cena educacional exige de nós todos a ampliação de repertórios de estratégias de mediação coletiva do aprendizado. Currículos e programas redimensionados sob a ótica da mobilidade, também os métodos necessitam de revisão.
Investigar, debater, ler em camadas, analisar com critérios, rever hipóteses, articular novos elementos, responder provisoriamente são exercícios com os quais procuramos incitar os alunos à autonomia e desenvoltura de pensamento. É desejável estender e aprofundar as formas de fazê-lo em nossa prática cotidiana.
Nem catadores, nem esquizoartistas, nem necessariamente poetas; educadores, nós mesmos, talvez possamos aprender com cada um desses Outros um pouco sobre a arte de desenhar mundos – assim no plural – em coletivos que não anulem a pluralidade dos sujeitos que os compõem.
Simples assim ...
Esse é o texto que a aluna, o professor e o outro professor me chamaram a articular na lembrança.
Mas um outro aluno, dessa vez das séries finais do Ensino Fundamental, instado a pensar nos personagens invisíveis de nossa cidade, oferece a tomada de outro ângulo para falar do catador a que me referi anteriormente. Dessa vez, o catador não é uma metáfora, mas uma das vítimas graves da crise causada pela pandemia do coronavírus:
“Ontem, quando estava caminhando com a minha família, fomos parados por um dos invisíveis da cidade. Aproximou-se de uma maneira educada. Homem magro, com roupas rasgadas e boca sem dentes, desabafou como era difícil sobreviver em uma cidade sem gente. Continuou e explicou que depende dos nossos restos, que ele cata os restos da cidade que mais ninguém percebe ou quer. Explica que ganhava dinheiro com a venda das latas de alumínio e de papelão”. E agora, em uma cidade sem gente..., os restos estarão guardados? E nosso catador? Deveria isolar-se em casa. Mas qual, se mora na rua? Ah!, mas é invisível.
É assim. Estamos em rede com os alunos. Propomos pensar e eles nos devolvem questões para continuar pensando. Com muita sensibilidade. E essa rede é digital somente nesse contexto. De resto, ela é viva e ao vivo.
Silvio Barini Pinto