São muitas as maneiras de levar a vida. Penso em distinguir duas nesse contexto: a mera vida e a vida bela. Essa divisão arbitrária não serve apenas para o momento crítico, mas ganha com ele uma materialidade palpável.
A mera vida nos leva a funcionar. Responder aos estímulos externos sem muito questioná-los. Lidar com vicissitudes como se naturais fossem. Pela mera vida sujeitamo-nos à realidade posta, ainda que não a desejemos, em nome da sobrevivência imediata. Aliás, sobreviver é a expressão mais utilizada pelos adeptos da mera vida. Como se, por si, ela fosse a finalidade universal de nossa existência. Geralmente, esse modo de viver redunda em certa resignação ou em ressentimento vitimista. Geralmente, o mero vivente pensa antes de tudo em sua individualidade – como se ela fosse possível sem o feixe de relações que o individualiza.
Já a bela vida tem a ver com a preocupação de conduzir esteticamente a existência. Estética que não é a reificação da beleza como conceito acabado. Essa estética tem a ver com a circunstância, tem a ver com o que é possível fazer de si mesmo e com os outros. Diz respeito à determinação de introduzir em qualquer situação em que esteja presente algo que a aprimore, imiscuindo ali mais potência. Ou seja, alegria, bem-estar, reconhecimento mútuo. Quem dirige sua vida em busca desse tipo de beleza tem uma perspectiva voltada para algo maior que si, considera o outro, considera a matéria-mundo como sistêmica. Representa a si mesmo como sujeito nesse sistema complexo e não apenas como assujeitado que mal compreende as lógicas do funcionamento de um mundo pervertido – como Josef K., em O processo . Eleva-se para além do aqui e agora. Desse modo, faz sentido pensar o afeto. Tem a ver cuidar da qualidade dos gestos assumidos. É pertinente pensar o comum – não como entidade mágica, positiva em si mesma, mas como dimensão do encontro a ser cuidado para gerar sempre mais potência de beleza, criatividade, felicidade – condições todas essas etéreas, frágeis, capazes de se rarefazer assim que cessarem os investimentos benfazejos.
Esse pode ser um critério para pensarmos em nós mesmos no resguardo do novo coronavírus. O tempo que ganhamos permite um balanço de como gerimos nossas vidas e para quê. São tantas questões simples que poderiam ajudar-nos a fazê-la mais prazerosa... E várias delas procrastinadas pelo imediatismo a que somos impelidos pelas tantas tarefas que nos são postas tão somente pela necessidade de sobrevivência. Será? E se for, vale a pena?
Não sei quanto a vocês todos, mas há uma dimensão da bela vida exposta em nossa realidade local para quem quiser ver. Ela está se fazendo revelar ainda mais realçada nesse instante. Trata-se da condição dos educadores do CSD empenhados em tarefas pesadas de decifração das tecnologias, que nunca foram nossa prioridade, para fazer chegar com qualidade as atividades postadas, leituras e narrações por eles protagonizadas em vídeo, chats com a regularidade que os faz manterem-se em contato pessoal com os alunos, remissão a dados e reflexões em sites por eles previamente pesquisados. Tudo isso por quê? Acreditamos que seja pelo fato de termos consciência de que cada vez que damos um passo o mundo se move um pouquinho. E que se fizermos nossos passos coletivos mover o mundo na direção dos possíveis que desejamos, conseguiremos produzir capacidade para enfrentar com mais leveza as adversidades vividas na atualidade.
Em muitos momentos de nossa experiência pedagógica nesse Colégio, levamos os alunos à tematização da coragem como qualidade necessária para significarmos a vida como obra autoral. Mobilizamos literaturas e outros recursos para esse empreendimento. Hoje, mostramos na prática o que significa ter coragem. O que significa encarar o deserto mais árido sem ceder ao medo, o que é lançar-se ao mar tenebroso sem saber se e como voltaremos – todas metáforas para referir o devir inexato, indefinido, mas cheio de possíveis que nos interessam porque estofam nossa vontade de nos inscrever – e de convocar nossos alunos a também fazê-lo – no mundo.
No momento em que nos vimos sem a presença viva dos alunos, os educadores não titubearam, não se esconderam atrás de posturas corporativistas, não economizaram vontade de superação. Apenas produziram em uníssono a determinação de sustentar os afetos fundamentais para a realização de qualquer aprendizagem verdadeira, de manter a consistência de uma relação educativa baseada na qualidade intelectual que os qualifica, de prosseguir cultivando a confiança recíproca e a franqueza que a apoia, de estimular a criatividade com a qual fazemos se atualizar a imaginação.
De meu lado, quero confessar que em quatro décadas como educador, tendo trabalhado com profissionais muito categorizados em vários momentos, esse é o contexto mais privilegiado de minha experiência educacional pois faço parte de um coletivo articulado, corajoso, desenvolto como nunca experimentei antes. E isso tem tudo a ver com a noção de bela vida. Acredito muito sinceramente que ensinamos um pouco disso aos seus filhos. E não apenas agora!
PS – Morremos de saudade do burburinho da escola e de nossos alunos. E não vemos a hora de dispensar as tantas ferramentas virtuais e tê-los pela frente, olho no olho. É certo que a experiência de manipular essas ferramentas nos traz novidades para a formação do pensamento. Mas isso estará a nosso serviço independentemente delas. Que passe logo o confinamento compulsório.
Silvio Barini Pinto