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Tanta gente se esconde do sonho com medo de sofre
Tanta gente se esquece que é preciso viver
Combater moinhos, caminhar entre o medo e o prazer
Somos todos na vida, qualquer um de nós
Vilões e heróis, vilões e heróis.

Dom Quixote, que Maria Rita interpreta, da composição de César Camargo Mariano e Lula Barbosa, na leitura dedicada de Robson Lourenço, professor do Núcleo de Artes, ao pé de meu ouvido e de mais um sem número de pessoas, durante o ECO de 2013.

Céu de brigadeiro. O sol prometeu e cumpriu calor de praia. As famílias e gostosuras chegavam para o brunch combinado. Projeto Interagir fazia jus ao verbo que lhe dá nome – recepção entusiasmada e acolhedora. Cristiano, da capoeira, convocou com berimbau e pandeiro o pessoal para a roda. Ali sintetizou o jogo que jogamos na educação do CSD: pulsação envolvente, ginga, espaço para todos que não resistem ao chamado – cada um entra como pode. Ei, mas também tem a precisão, a destreza, a experiência, sem as quais os gestos não têm leveza. Jogo tem disso – quem tá de fora acha que é fácil, que qualquer um pode fazer, mas entre na roda só para ver... O máximo da correspondência entre metáfora e acontecimento: para os protagonistas do jogo/luta a regra é “olhar na bolinha do olho do outro” para cumprimentar. Também nossa Comunidade se caracteriza pelo olho no olho – sinceridade da relação, franqueza de propósitos, confiança parceira de quem quer jogar/lutar para afirmar-se junto ao outro, não para anulá-lo.

Contação de histórias, oficinas de criação de instrumentos musicais, ciranda para todos, palco aberto – e que talentos... Os professores do Núcleo de Artes 2013 ofereceram-se aos presentes: apresentavam-se pela leitura de frases seletas do mundo das artes com palavras, cheias de significados para o encontro, pessoa a pessoa. Olhando na bolinha dos olhos, como se deve. Comportamento que também era dos alunos que serviam as guloseimas nas rodas de conversas e dos funcionários que cuidavam da organização e da alegria.

Congraçamento era o objetivo e foi o resultado. Tá tudo registrado!!! (clique para ver as imagens) A graça comum é a aventura de sonhar sem se esconder, de combater moinhos, com medo, mas sobretudo com o prazer de não acovardar. Firmes na precisão, descontraídos na ginga, nem vilões nem heróis. Determinados.

O acontecimento foi coisa muito curta, que eu poderia embrulhar num instante.

E se converso demais, é porque a gente precisa matar o tempo, não sapecar tudo logo de uma vez.

Se fosse assim, a história perdia a graça.

Graciliano Ramos, na fala de Alexandre, seu personagem, na leitura dedicada de Gustavo Curado , professor do Núcleo de Artes, ao pé do ouvido de muitos, no ECO 2013.

Silvio Barini Pinto

Um poema em prosa do século XIX narra a imprudência de um vendedor de vidros que tentara comercializar seus produtos em um bairro pobre. Acabou escorraçado pelas escadas por morador do sexto andar que praguejava algo assim: “Como ousas vender vidros transparentes em lugares como o nosso? Como ousas trazer-nos vidros que não embelezam a vida? Os queremos rosa, vermelhos, azuis...”. Tombado com sua carga vulnerável às costas. Ambos quebrados, e ainda a receber vaticínios em forma de chiste: “A vida com beleza! A vida com beleza!”, lhe era repetido aos berros enquanto se afastava.

Vejam que foi ao cotidiano ordinário que o poeta recorreu como partida para a construção lírica. Não se socorreu em nada sublime. Quase ao contrário, a reação do sujeito que agride o mau vidraceiro chega a ser vil, perversa. Por outro lado, é justo o grotesco da situação que nos põe a pensar que de fato pode ser uma ousadia imprudente não introduzir nenhuma corzinha na vida mundana sem graça nenhuma. Pronto, com isso foi universalizada a percepção. Sem, contudo, reduzir significados.

Pois cá estou eu a me assemelhar ao mau vidraceiro do poema. Num mundo de espetáculos e performances, de brilhos e cores, de tridimensionalidade holográfica que pode ser experimentada diante de nossa TV, ouso eu, pobre incauto, trazer para vocês um filme preto e branco, silencioso (embora musicado nas exibições), que não conta nenhuma história grandiosa ou engrandecedora. Espero não rolar escada abaixo antes mesmo de propor a experiência...

Teremos pela frente o filme de um sujeito que resolveu revelar aos espectadores como se constrói uma narrativa cinematográfica. Desistente de fazer o cine-verdade - documentários que afirmavam uma tomada da realidade como única e verdadeira para legitimar o regime político a que servia, propôs-se afirmar a linguagem cinematográfica como construto subjetivo, tal como qualquer outra.

Basicamente, o filme apresenta uma cidade desde seu despertar até o recolher-se. Entretanto, o faz por meio de um jogo metalingüístico. Ao mesmo tempo em que constrói sua narrativa, vai contando ao espectador como ele faz isso. Para tanto, o diretor cria para si um alter ego, uma personagem cinegrafista que seria o capturador das imagens da história contada; nos conduz até o mecanismo ótico de sua lente; nos faz sentir o ritmo da manivela que movimenta o filme no interior do chassi da câmera. Mostra os bastidores da edição.

Nisso, é didático. E como toda narrativa didatizada, requer tolerância de quem já entendeu tudo desde a primeira enunciação. Por favor, sejam condescendentes com a repetição...

Mas o diretor também complica. Porém com sutileza. Uma atenção mais dedicada nos fará perceber o jogo que faz para construir significações, ou seja, como escolhe serializar as imagens que captou. Permitirá-nos ver que aproxima planos distintos que, à primeira vista, não teriam relação nenhuma. Logrará nos levar à constatação de que algumas dessas aproximações se dão por vizinhança, outras por disjunção. E isso pode se alternar durante a narrativa. Complexo?

O complexo não exige tolerância, exige persistência, determinação. É, por si, desafiante.

O desafio, pois, está na proposta de que, durante a exibição, cada um busque registrar como essa história simples é contada no filme. Quais são os recursos empregados - sequência de apresentação das imagens, variação de ritmo na montagem, enquadramentos distintos... Além disso, para nossa reflexão posterior, importará tentar identificar onde esteve a câmera para captar as imagens que nos estão sendo mostradas. Esse convite é feito pela personagem cinegrafista a cada vez que aparece, mas não se reduz a isso. Imaginá-la quando não é tornada óbvia é nossa intenção também. Aí talvez morem as diferenças...

Assim, começamos nossa semana de replanejamentos. Partimos agora de algo problemático para nos experimentar na construção de problemas para investigar junto com os alunos. Prosseguiremos, na segunda etapa dessa proposta, com o diálogo reflexivo para aquecer nossas estratégias de interatividade com os grupos nas salas de aula. Criticaremos os modos dessa proposição para depurar formas de mediar aprendizagens que empregaremos na prática educativa. Estamos em regime de ensaio e prospecção.

Pois bem, depois desse exercício, vocês podem me empurrar pela escada. Por certo, terão bem mais motivos que o morador do sexto andar que não se conformou com os vidros translúcidos. Mas não esqueçam a vinheta, pois ela é muito instigante: “A vida com beleza! A vida com beleza!”.

Lá de baixo, sem constrangimento nem ódio, lhes responderei que a beleza talvez não esteja apenas no colorido. De tanto uso, as cores têm composto estética de consumo rápido. Uma das manifestações do belo, no contemporâneo, pode se instalar no modo de dispor elementos já conhecidos, na maneira inusitada de narrar histórias já tateadas, na curadoria criativa e consistente de nossos repertórios coletivos. Pronto, repetição e diferença se conciliam naquilo que estaremos a produzir nesse tempo de redefinir rumos e itinerários.

Convido-os ao trabalho!

Silvio Barini Pinto

SP 31/07/2013 – Replanejamento CSD

Filme: Homem Com Uma Câmera, 1929 - Direção: Dziga Vertov
Poema em prosa: O Mau vidraceiro - Charles Baudelair

Vocacional: uma aventura humana - Direção: Toni Venturi Documentário, 2012

Bullying, indisciplina, ranking do vestibular... facilmente identificamos esses termos como pertencentes ao universo escolar contemporâneo. Mas, na década de 1960, eles certamente causariam estranhamento entre alunos, professores e pais, em especial aos que compartilharam a experiência dos Ginásios Vocacionais, sediados em seis cidades do estado de São Paulo.

Quem conta a história desta “aventura humana”, subtítulo do documentário “Vocacional”, é o cineasta Toni Venturi, também ele aluno da unidade da capital, Oswaldo Aranha: “não imaginava que iria fazer parte de uma das experiências mais ousadas da escola pública no Brasil”.

Em um momento de grande desenvolvimento tecnológico e científico, foi criada em São Paulo, pela secretaria de educação, uma portaria para a constituição de classes experimentais fundamentadas na linha pedagógica da Escola de Sévres (França). Nomeada pelo secretário da época, a pedagoga Maria Nilde Mascellani (1931 -1999) organizou um grupo de educadores que se engajaram então na proposta de construir escolas públicas preocupadas em “formar cidadãos livres, em condições de tomar consciência de seu papel como agente transformador” (Cecília Guaraná, diretora do Vocacional de Batatais). Assim surgiu o Sistema de Ensino Vocacional, tendo como ideia primordial renovar a educação brasileira, levando o aluno a pensar, aprender a trabalhar em grupo, desenvolver sensibilidade artística e habilidades técnicas, além de abrir as portas da escola para a comunidade.

A partir de sondagens das características culturais e socioeconômicas de cada localidade, estudantes das mais diversas classes sociais eram admitidos e, além das matérias tradicionais, aprendiam práticas agrícolas, comerciais, artes industriais, plásticas, música, educação doméstica. Liam jornais, organizavam painéis com recortes de notícias, relacionando-as aos países de origem e, desde muito cedo, debatiam fatos da atualidade, conscientes de que: “Eu pertenço ao mundo todo, e não somente à comunidade em que vivo” - frase em destaque em um dos painéis.

Pregar botão, lavar louça, passar roupa, trocar fraldas de bebês, cozinhar para os colegas, organizar as finanças da cantina, pintar os vitrais da escola também faziam parte do cotidiano e eram tratadas como atividades tão importantes quanto aprender matemática, sendo integradas aos outros campos de conhecimento. Também tinham lugar os trabalhos sociais em postos de saúde e favelas, bem como os estudos do meio, práticas que originaram ações semelhantes em algumas instituições da atualidade.

A perspectiva era de “fazê-los sentir as várias facetas da cultura humana” (Áurea Sigrist, diretora do Vocacional de Americana). Para tanto, havia o cuidado de dar suporte aos professores, todos muito bem pagos, por sinal, incentivando-os a se interessarem pelo universo cultural, teatro, cinema, literatura, além de formá-los (e não formatá-los... ) de modo que desenvolvessem recursos para trabalhar as matérias de maneira articulada, com uma interlocução efetiva entre as várias áreas do conhecimento, valorizando-se, sobretudo, as discussões em grupo. O professor, de fato, deixava de ser o único responsável pela transmissão dos conteúdos, convocando o aluno a participar ativamente, inclusive, da escolha dos temas que seriam estudados durante o ano e de sua própria avaliação.

“Eu era um professor competente, mas me tornei um educador no Vocacional. Formado na USP, eu não tinha ideia do papel afetivo do professor; para mim, era um trabalho intelectual puro”, revela Newton Balzan, supervisor de estudos sociais, área central, e completa: “[No Vocacional] Nós trabalhávamos com os alunos em equipe, havia muito respeito dos alunos para conosco, apesar de sentarmos ao lado deles, estudarmos com eles, jogar bola com eles nos intervalos. Nós éramos apaixonados pelo que fazíamos, e os alunos também”. Essa paixão fica também evidente na fala do professor de artes plásticas, outra área muito valorizada: “[trabalhar com arte] é aproximar-se desse fenômeno, que entendo como manifestação poética, ou seja, uma passagem que vivemos de um não-ser para um ser, o que em termos de arte poderia ser um projeto, uma vontade de realizar alguma coisa. No Vocacional se aprendia pela experiência, um praticar é tão importante quanto um pensar. Você entrava em um processo de fazer, pensar, voltar a fazer, pensar (...). Os alunos tiveram a oportunidade de vivenciar a prática de uma inteligência sensível” (Evandro Jardim).

Todos eram livres para manifestar suas ideias entre os colegas, professores e orientadores, sendo instigados a fazê-lo. E, ao final de cada ano, organizavam sínteses do que haviam aprendido e as apresentavam a toda a comunidade, inclusive aos pais.

Em vez de intolerância, havia solidariedade: “Me acidentei no laboratório de ciências, sofri uma queimadura de terceiro grau, ficou um buraco no meu rosto. No dia seguinte, cheguei no colégio e não tinha nenhum espelho. Eles foram tirados para eu não ver minha cara” (aluna).

Em vez de indisciplina, rebeldia saudável, e por uma boa causa, contra o regime ditatorial: “a polícia rodeava a escola com helicópteros. Lembro que a gente combinou de irmos todos vestidos com o uniforme de educação física, que era branco e vermelho, e a gente escreveu uma palavra com os nossos corpos no chão da escola. Na hora em que o helicóptero foi chegando, a gente falou, é agora! Todo mundo deitou no chão e escreveu: CU, bem grande. Era nossa vingança adolescente contra aquela situação completamente opressiva. Estava todo mundo grudado um no outro, com muito medo, mas certos de que era aquilo que a gente tinha de fazer” (aluna).

Em vez do incentivo à competição e preocupação obsessiva com os conteúdos do vestibular, incentivo à formação de cidadãos críticos: “O Ensino Vocacional tem como principal objetivo levar o jovem à descoberta de sua personalidade, conhecendo os seus interesses, as suas aptidões e percebendo o mundo e a si mesmo, a fim de situar-se na sociedade, e aí desempenhar o seu papel de homem transformador” (Maria Nilde Mascellani, que coordenou o Ensino Vocacional de 1961 até o ano de sua extinção, em 1969).

Mas, pergunta Toni, como um projeto tão arrojado e inovador como este pode ter sido interrompido, dando lugar a práticas tão menos criativas? “40 anos depois a educação brasileira parece estar há anos-luz da experiência que vivemos”. Não há como discordar. Ainda que tenhamos notícias de iniciativas que comungam dos ideais do Vocacional, o que impera como sistema de ensino no país é muito mais a fragmentação do saber, junto com a centralização do conhecimento no professor, afastamento da comunidade, inclusive dos pais, convocados, geralmente, para apenas ajudar na lição de casa, a maioria delas, puro treinamento de habilidades, exigindo pouca reflexão. Exercícios e mais exercícios, sem contexto, sem significado, e cada vez menos tempo para a experimentação. E isso mesmo com o uso das novas tecnologias, tão alardeado como solução para tantos e tantos problemas. O documentário detalha a forma covarde como a ditadura militar abortou o projeto de desenvolver uma escola em que os alunos eram incentivados a pensar, debater, a assumir atitudes críticas diante da realidade. Ou seja, uma escola subversiva, pelo visto, não só para os padrões da época.

Pressões para forçar a matrícula dos filhos da elite, sem passar pelo processo de seleção, perseguições políticas, desafetos acusando colegas de engajamento em movimentos de esquerda acabaram por levar à demissão de Maria Nilde Mascellani, considerada por todos os entrevistados a maior responsável por este projeto de escola libertária, e que em seguida foi presa no DOPS, onde sofreu torturas psicológicas durante dois meses.Em 1969, houve inclusive uma invasão militar em todos os Ginásios Vocacionais, levando à prisão de orientadores e professores.

“Todos se sentiram órfãos”, declara Toni. E lembra: “a matéria de educação sexual foi substituída por Educação Moral e Cívica, ministrada por um professor militar que dava aulas fardado...”.

E assim teve fim uma experiência de escola que, certamente, se tivesse se generalizado, como bem disse um aluno, “o Brasil seria melhor; não teríamos passado tantos traumas e hoje seríamos uma sociedade mais justa”.

Mas fica a esperança de voltarmos a ter uma educação de qualidade, renovada nos últimos tempos pela atitude da aluna de Florianópolis, que deu uma lição de cidadania ao usar a rede social Facebook (Diário de Classe, a verdade) para reivindicar mudanças em sua escola: “Eu Isadora Faber que tenho 13 anos, estou fazendo esta página para mostrar a verdade sobre as escolas públicas. Quero o melhor não só pra mim, acho realmente que juntos podemos melhorar a educação pra todos”... A frase caberia muito bem em um dos muros do Vocacional, não?

Claudia Perrota