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Vocacional: uma aventura humana - Direção: Toni Venturi Documentário, 2012

Bullying, indisciplina, ranking do vestibular... facilmente identificamos esses termos como pertencentes ao universo escolar contemporâneo. Mas, na década de 1960, eles certamente causariam estranhamento entre alunos, professores e pais, em especial aos que compartilharam a experiência dos Ginásios Vocacionais, sediados em seis cidades do estado de São Paulo.

Quem conta a história desta “aventura humana”, subtítulo do documentário “Vocacional”, é o cineasta Toni Venturi, também ele aluno da unidade da capital, Oswaldo Aranha: “não imaginava que iria fazer parte de uma das experiências mais ousadas da escola pública no Brasil”.

Em um momento de grande desenvolvimento tecnológico e científico, foi criada em São Paulo, pela secretaria de educação, uma portaria para a constituição de classes experimentais fundamentadas na linha pedagógica da Escola de Sévres (França). Nomeada pelo secretário da época, a pedagoga Maria Nilde Mascellani (1931 -1999) organizou um grupo de educadores que se engajaram então na proposta de construir escolas públicas preocupadas em “formar cidadãos livres, em condições de tomar consciência de seu papel como agente transformador” (Cecília Guaraná, diretora do Vocacional de Batatais). Assim surgiu o Sistema de Ensino Vocacional, tendo como ideia primordial renovar a educação brasileira, levando o aluno a pensar, aprender a trabalhar em grupo, desenvolver sensibilidade artística e habilidades técnicas, além de abrir as portas da escola para a comunidade.

A partir de sondagens das características culturais e socioeconômicas de cada localidade, estudantes das mais diversas classes sociais eram admitidos e, além das matérias tradicionais, aprendiam práticas agrícolas, comerciais, artes industriais, plásticas, música, educação doméstica. Liam jornais, organizavam painéis com recortes de notícias, relacionando-as aos países de origem e, desde muito cedo, debatiam fatos da atualidade, conscientes de que: “Eu pertenço ao mundo todo, e não somente à comunidade em que vivo” - frase em destaque em um dos painéis.

Pregar botão, lavar louça, passar roupa, trocar fraldas de bebês, cozinhar para os colegas, organizar as finanças da cantina, pintar os vitrais da escola também faziam parte do cotidiano e eram tratadas como atividades tão importantes quanto aprender matemática, sendo integradas aos outros campos de conhecimento. Também tinham lugar os trabalhos sociais em postos de saúde e favelas, bem como os estudos do meio, práticas que originaram ações semelhantes em algumas instituições da atualidade.

A perspectiva era de “fazê-los sentir as várias facetas da cultura humana” (Áurea Sigrist, diretora do Vocacional de Americana). Para tanto, havia o cuidado de dar suporte aos professores, todos muito bem pagos, por sinal, incentivando-os a se interessarem pelo universo cultural, teatro, cinema, literatura, além de formá-los (e não formatá-los... ) de modo que desenvolvessem recursos para trabalhar as matérias de maneira articulada, com uma interlocução efetiva entre as várias áreas do conhecimento, valorizando-se, sobretudo, as discussões em grupo. O professor, de fato, deixava de ser o único responsável pela transmissão dos conteúdos, convocando o aluno a participar ativamente, inclusive, da escolha dos temas que seriam estudados durante o ano e de sua própria avaliação.

“Eu era um professor competente, mas me tornei um educador no Vocacional. Formado na USP, eu não tinha ideia do papel afetivo do professor; para mim, era um trabalho intelectual puro”, revela Newton Balzan, supervisor de estudos sociais, área central, e completa: “[No Vocacional] Nós trabalhávamos com os alunos em equipe, havia muito respeito dos alunos para conosco, apesar de sentarmos ao lado deles, estudarmos com eles, jogar bola com eles nos intervalos. Nós éramos apaixonados pelo que fazíamos, e os alunos também”. Essa paixão fica também evidente na fala do professor de artes plásticas, outra área muito valorizada: “[trabalhar com arte] é aproximar-se desse fenômeno, que entendo como manifestação poética, ou seja, uma passagem que vivemos de um não-ser para um ser, o que em termos de arte poderia ser um projeto, uma vontade de realizar alguma coisa. No Vocacional se aprendia pela experiência, um praticar é tão importante quanto um pensar. Você entrava em um processo de fazer, pensar, voltar a fazer, pensar (...). Os alunos tiveram a oportunidade de vivenciar a prática de uma inteligência sensível” (Evandro Jardim).

Todos eram livres para manifestar suas ideias entre os colegas, professores e orientadores, sendo instigados a fazê-lo. E, ao final de cada ano, organizavam sínteses do que haviam aprendido e as apresentavam a toda a comunidade, inclusive aos pais.

Em vez de intolerância, havia solidariedade: “Me acidentei no laboratório de ciências, sofri uma queimadura de terceiro grau, ficou um buraco no meu rosto. No dia seguinte, cheguei no colégio e não tinha nenhum espelho. Eles foram tirados para eu não ver minha cara” (aluna).

Em vez de indisciplina, rebeldia saudável, e por uma boa causa, contra o regime ditatorial: “a polícia rodeava a escola com helicópteros. Lembro que a gente combinou de irmos todos vestidos com o uniforme de educação física, que era branco e vermelho, e a gente escreveu uma palavra com os nossos corpos no chão da escola. Na hora em que o helicóptero foi chegando, a gente falou, é agora! Todo mundo deitou no chão e escreveu: CU, bem grande. Era nossa vingança adolescente contra aquela situação completamente opressiva. Estava todo mundo grudado um no outro, com muito medo, mas certos de que era aquilo que a gente tinha de fazer” (aluna).

Em vez do incentivo à competição e preocupação obsessiva com os conteúdos do vestibular, incentivo à formação de cidadãos críticos: “O Ensino Vocacional tem como principal objetivo levar o jovem à descoberta de sua personalidade, conhecendo os seus interesses, as suas aptidões e percebendo o mundo e a si mesmo, a fim de situar-se na sociedade, e aí desempenhar o seu papel de homem transformador” (Maria Nilde Mascellani, que coordenou o Ensino Vocacional de 1961 até o ano de sua extinção, em 1969).

Mas, pergunta Toni, como um projeto tão arrojado e inovador como este pode ter sido interrompido, dando lugar a práticas tão menos criativas? “40 anos depois a educação brasileira parece estar há anos-luz da experiência que vivemos”. Não há como discordar. Ainda que tenhamos notícias de iniciativas que comungam dos ideais do Vocacional, o que impera como sistema de ensino no país é muito mais a fragmentação do saber, junto com a centralização do conhecimento no professor, afastamento da comunidade, inclusive dos pais, convocados, geralmente, para apenas ajudar na lição de casa, a maioria delas, puro treinamento de habilidades, exigindo pouca reflexão. Exercícios e mais exercícios, sem contexto, sem significado, e cada vez menos tempo para a experimentação. E isso mesmo com o uso das novas tecnologias, tão alardeado como solução para tantos e tantos problemas. O documentário detalha a forma covarde como a ditadura militar abortou o projeto de desenvolver uma escola em que os alunos eram incentivados a pensar, debater, a assumir atitudes críticas diante da realidade. Ou seja, uma escola subversiva, pelo visto, não só para os padrões da época.

Pressões para forçar a matrícula dos filhos da elite, sem passar pelo processo de seleção, perseguições políticas, desafetos acusando colegas de engajamento em movimentos de esquerda acabaram por levar à demissão de Maria Nilde Mascellani, considerada por todos os entrevistados a maior responsável por este projeto de escola libertária, e que em seguida foi presa no DOPS, onde sofreu torturas psicológicas durante dois meses.Em 1969, houve inclusive uma invasão militar em todos os Ginásios Vocacionais, levando à prisão de orientadores e professores.

“Todos se sentiram órfãos”, declara Toni. E lembra: “a matéria de educação sexual foi substituída por Educação Moral e Cívica, ministrada por um professor militar que dava aulas fardado...”.

E assim teve fim uma experiência de escola que, certamente, se tivesse se generalizado, como bem disse um aluno, “o Brasil seria melhor; não teríamos passado tantos traumas e hoje seríamos uma sociedade mais justa”.

Mas fica a esperança de voltarmos a ter uma educação de qualidade, renovada nos últimos tempos pela atitude da aluna de Florianópolis, que deu uma lição de cidadania ao usar a rede social Facebook (Diário de Classe, a verdade) para reivindicar mudanças em sua escola: “Eu Isadora Faber que tenho 13 anos, estou fazendo esta página para mostrar a verdade sobre as escolas públicas. Quero o melhor não só pra mim, acho realmente que juntos podemos melhorar a educação pra todos”... A frase caberia muito bem em um dos muros do Vocacional, não?

Claudia Perrota