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Revista Veja abrevia a reflexão sobre o ensino dessas disciplinas

Em março de 2010, a direção, professor e alunos do 1º ano do Ensino Médio participaram da preparação de reportagem da Revista VEJA que abordou a colocação em prática da legislação que torna obrigatória, para todo o Brasil, a inclusão das disciplinas de Filosofia e Sociologia nos currículos de Ensino Médio. Após tratamentos editoriais, a matéria ganhou o título "Ideologia na cartilha".

Por motivos não conhecidos, os depoimentos que foram prestados ao repórter por nossos educadores não foram contemplados no texto final. Nossa participação nessa matéria seria a de oferecer contraponto a uma suposta preocupação com o que foi chamado de “ideologização do currículo”. Segundo hipótese dos jornalistas, essa ideologização resultaria da introdução compulsória dessas disciplinas nos cursos de Ensino Médio.

Nas entrevistas, esclarecemos que, no Colégio São Domingos, Filosofia é integrante do currículo desde o 6º ano do Ensino Fundamental, há muito tempo. E que, por sua vez, a abordagem sociológica antes mesmo da implementação da lei já não era estranha a disciplinas como Geografia e História, por exemplo, além de se manifestar sistematicamente na produção de monografias dos alunos do 2º ano do Ensino Médio. Fora isso, é também nesses campos de conhecimento que nossos educadores buscam elementos para refletir sobre tendências culturais contemporâneas ou mesmo sobre aspectos sociológicos e filosóficos da educação.

Portanto, contrariamente à hipótese original da revista, revelamos contar com a formação sólida dos professores que ministram essas disciplinas e com o profissionalismo que os faz seguir princípios caros ao nosso colégio, tais como a contextualização dos conhecimentos – nesse caso, dos modelos explicativos da Filosofia e da Sociologia – e a apresentação aos alunos de concepções diversificadas para reflexão coletiva.

Essa é a síntese do que foi relatado ao repórter que nos ouviu em mais de uma oportunidade, considerando que nossa experiência seria interessante para o trabalho jornalístico que realizava.

Portanto, a questão que se tornou central no texto final da matéria, ou seja, o “risco de ideologização do currículo com as aulas de Filosofia e Sociologia”, não diz respeito ao nosso colégio. Tão pouco enfrentamos dificuldade na contratação de educadores para essas áreas pelos motivos constantes da matéria.

Citar-nos dizendo que procuramos professores “desprovidos de ideologia” foi um equívoco certamente produzido pelas tantas interferências que sofre o texto jornalístico desde a coleta de depoimentos até sua publicação. Seria, no mínimo, uma declaração ingênua e desfocada do que realmente interessa na prática educativa do Colégio São Domingos. Lamentamos que tal frase nos tenha sido atribuída, sem qualquer tentativa de confirmação, ética consagrada no bom jornalismo.

Definitivamente, preocupação com o “proselitismo de qualquer matriz teórico-conceitual”, que pode ser uma questão para muitas escolas, especialmente aquelas que não possuem tradição pedagógica como a nossa, passa ao largo no Colégio São Domingos.

Sempre que consultados a esse respeito, poderemos apresentar referências consistentes de como trabalhar conteúdos de qualquer natureza de forma plural, investigativa e reflexiva.

Silvio Barini Pinto

Tragédia na escola de Realengo (RJ): modos de olhar

Fomos atingidos no fígado! As imagens do massacre de crianças no interior da escola carioca no início de abril de 2011 certamente afetaram-nos pela indignação, medo, raiva. Desconcerta-nos pensar que o indivíduo que o cometeu poderia passar ao nosso lado sem gerar nenhuma suspeita de pretender o massacre que protagonizou. Incomoda-nos admitir que ele partilhe conosco a condição humana. Revolta-nos que o cenário da chacina tenha sido justamente uma instituição dedicada a humanizar a vida social.

As vítimas todas e suas famílias merecem nossa compaixão. As crianças sobreviventes, os educadores e funcionários da escola são dignos de nossa solidariedade. Disso ninguém duvida.

Dia seguinte, talvez já seja a hora de levar a reação do fígado para o intelecto. Certamente a cobertura midiática não sintonizará com esse propósito.

Mas, nós educadores temos o dever de favorecer a reflexão que ajude a dimensionar lucidamente o episódio. É importante produzir um afastamento que nos permita ir além das narrativas sensacionalistas com que ele é embalado para consumo. Necessitamos escapar do bombardeio serial de imagens repetidas e micro informações que tentam sustentar duradouramente no público as emoções – e só elas – experimentadas no primeiro impacto causado pelo fato.

Foram esses objetivos que nos levaram a solicitar aos nossos alunos que expressassem como as notícias do massacre os afetaram.

Comovidos, num primeiro momento, alguns produziram mensagens acolhedoras aos vitimados. Depois, mais encorajados, vários falaram de medo de sair de casa, outros perguntaram se iremos sofisticar os dispositivos de segurança da escola. Columbine (EUA) foi lembrada pela similitude. Muitos queriam saber exatamente porque o “atirador de Realengo”, como está sendo chamado, agiu daquela forma. Vários ressoavam as chaves explicativas: “ele sofreu bullying na escola”, “ele era esquizofrênico”, “era fanático religioso”, “solitário”, “esquisito”, “foi sua revolta por não ter perdido ainda a virgindade”, “tinha tara sexual e visava atingir as meninas”.

O que ouvimos nessas manifestações espontâneas e sinceras parece comunicar desejo (que é comum a nós todos) de proteção incondicional e necessidade de dar ao fenômeno uma explicação que baste por si mesma – um algoritmo que sintetize a complexidade.

Nunca saberemos as motivações verídicas do sujeito que disparou sobre as crianças. Esse é um limite diante do qual não nos conformamos facilmente. Nenhuma das especulações, pistas, ilações produzidas a partir de migalhas informativas serão suficientes para dar conta da complexidade que se instalou na mente do assassino para que ele agisse. O risco de adotar qualquer uma das “chaves explicativas” é justamente produzir o avesso do que a sociedade necessita mais e mais. Podemos aguçar o preconceito contra religiosos, portadores de esquizofrenia, pessoas mais contidas, solitárias. Mesmo as afirmações de que o bullying que o autor dos disparos sofreu teria instalado a crueldade em sua personalidade é uma construção discursiva de efeito temerário. Pode ser utilizada para hostilizar possíveis detratores. Agressão contra agressão gera mais intolerância ainda.

A ação do assassino problematiza a condição humana. Inquieta-nos ter de admitir que mesmo agindo animalescamente ele continue pertencente à espécie. A humanidade é algo construído culturalmente, é produto de um esforço civilizatório que não termina nunca, felizmente. O inacabamento, a imperfeição são próprios da hominização.

Cada indivíduo processa o investimento cultural na civilização de maneira muito singular e complexa. Alguns escapam aos padrões. Às vezes, isso lhes impõe a marginalidade, o sofrimento, a doença, a morte de si e/ou dos outros. Portanto, ao lado do questionamento da motivação para alguém assumir comportamento tão díspar dos padrões aceitos no atual contexto civilizatório, como aconteceu no Rio, há que se refletir sobre a prática de isolamento social de quem manifesta diferenças.

Obviamente, esse caso choca, e muito, principalmente por ultrapassar tanto a curva de normalidade dos comportamentos que sustenta o equilíbrio de nossas relações sociais. Porém, precisamos perguntar: teria esse fulano chegado ao extremo que chegou se tivesse tido oportunidade de acolhimento familiar, de amigos, profissional? Ninguém percebeu que o indivíduo se isolava e manifestava carências? Se percebeu, provavelmente reagiu da maneira mais normal (e bem aceita socialmente) que é dizer “cada um com seus problemas”.

Foi desse senso comum que partimos com os alunos para lembrá-los que o antídoto contra a manifestação de atitudes como a do “atirador de Realengo” é a construção de uma malha (evito a palavra rede, intencionalmente) de relacionamentos que nos proteja de nós mesmos em situações-limite de recusa civilizacional, de rebeldia autodestrutiva, de desespero.

O medo em excesso produz monstros! Portanto, quem é que ganha com a sustentação da paranóia coletiva que esse episódio suscita? Certamente aqueles que oferecem segurança: estado forte, empresas de segurança, vendedores de seguro, alarmes, cercas elétricas, câmeras, detectores de metais ...

Agora que sabemos que também no Brasil há um caso de invasão de escola e massacre de crianças, devemos blindar nossos colégios? Para alguns, a resposta é outra pergunta: qual a probabilidade de algo semelhante voltar a ocorrer? De nossa parte, propomos uma nova questão: que papel pode ter a educação para evitar que desgraças desse porte (coletivas ou individuais) ocorram em qualquer circunstância e não apenas em escolas?

Na nossa pergunta está contida já a ideia de que só podemos trabalhar para evitar. Assumimos essa condição honestamente. Empresas que vendem segurança não assumem isso. Entretanto, mesmo com todos os dispositivos sofisticados, bancos e lojas continuam a ser assaltados. Evitamos a hipocrisia. Temos claro que sobre a ação humana (desviante que seja) não há controle suficiente. Portanto, não vamos engrossar a onda paranoizante que dá azo a uma sociedade do controle a la Big Brother – o de G. Orwell, não o da Globo.

O impacto de Realengo não abalará nossa crença de que educar envolve prestar atenção às pessoas (não somente para controlá-las), levar em consideração suas subjetividades, afirmar positivamente suas diversidades, oferecer-lhes continência quando necessário, exercitar com elas a cooperação, o diálogo, o desafio de não aceitar soluções fáceis e ligeiras sem refletir grande.

Continuaremos a praticar e incentivar o enlace comunitário como referência para a construção de malhas relacionais que possam nos sustentar quando tombamos do trapézio.

Seguiremos na intenção de aquecer as redes digitais. Diante de uma tragédia como essa, convocamos todos a ampliar suas reflexões e a realizar seu compromisso civilizador com aqueles que estejam à volta. Vamos apenas recordar que segurança absoluta era o que o atirador pretendia quando chegasse a um suposto paraíso. Pois que lá fique, bem seguro!

Silvio Barini Pinto

O assombroso crescimento da prescrição de drogas medicamentosas para crianças com o objetivo de torná-las “ajustadas” à convivência social é impactante (cerca de 940%, em 4 anos!) . Hiperatividade, déficits de atenção e impulsividade são campeões no quadro das supostas patologias de que as crianças e adolescentes seriam portadoras.

Multiplicam-se laudos, ora levados espontaneamente pelos familiares às escolas, ora resultantes de encaminhamentos feitos sob a orientação de educadores. Essa “atuação cooperativa” entre educadores e profissionais da área psi, neurologistas e outros no detalhamento desses diagnósticos é merecedora de atenção.

Será que os educadores estão se colocando as questões “Quanto estamos a contribuir para a produção social de doenças? Como atuar de forma mais criteriosa em relação a essa onda? Como esclarecer-nos e às famílias quanto às armadilhas produzidas por esse fenômeno?”.
Por certo, ao participar do jogo social, estamos todos envolvidos na produção e reprodução de discursos como esse que emerge no momento atual relacionado aos déficits, distúrbios e síndromes de ordem perceptiva. Informações disponíveis numa rede comunicativa que envolve as falas clínicas, as reportagens dos cadernos de saúde dos jornais e revistas, sites da internet e a literatura abundante sobre o assunto (com grande sucesso de vendas em feiras e congressos de educação) fornecem a instrumentalização ligeira e leiga para que qualquer indivíduo se torne um diagnosticador – no limite da charlatanice.

No universo educacional, não raro, esses “diagnósticos” são proferidos nas salas de professores e conselhos de classe onde se discorre com fluência e suposta propriedade sobre os desvios e patologias de que os alunos seriam portadores. A partir da apropriação desse discurso, as manifestações comportamentais indesejadas e/ou incompreendidas são correntemente classificadas como hiperatividade, déficit de atenção, transtorno bipolar ou qualquer outra categoria emprestada do campo clínico. As famílias, alertadas pela escola, acabam por procurar especialistas da saúde portando já um quadro de observações pré-estabelecido e indutor. Há médicos e psicólogos criteriosos, mas é comum a criança ou adolescente retornar ao cotidiano escolar medicado. “Quando ela está medicada, é ótima aluna”, é um bordão proferido com freqüência atualmente entre professores.
A indústria farmacêutica agradece. E, geralmente, os professores atingem o intento subjacente aos “diagnósticos”.

A medicação das crianças e adolescentes, diga-se, é altamente eficaz na regulação de comportamentos - a ritalina chegou a ser nomeada droga da disciplina, ou da obediência. Castigos corporais e códigos morais já serviram mais intensamente ao mesmo propósito em outras épocas. Embora em xeque contínuo, as avaliações seletivas continuam sendo um instrumento regulador.

Docilizar os desviantes pode ser um recurso para adiar a investigação das condicionantes sócio-históricas que tornam imperativas as revisões das metas e práticas escolares. Fecham-se os olhos, dessa forma, para uma realidade inelutável que é a de que está em curso a produção de novas subjetividades. Entre outras causas, isso tem a ver com a quantidade e qualidade de tecnologias hiperestimuladoras a que as gerações mais novas estão expostas desde a tenra infância e pelo cultivo do consumo voraz de conectividade –condicionante do qual não escapamos também nós, os adultos. Isso envolve, além das mudanças comportamentais mais visíveis (“tá ligado?”), também novas condições cognitivas (como o acionamento mais freqüente da intuição que dos modelos mentais mais clássicos para a solução de problemas).

É uma pena esse adiamento. Se nos dermos conta disso mais ágil e profundamente, seremos capazes de inventar adequações que tornarão a escola menos familiar ao século XII – quando combinava a estrutura de transmissão de conhecimento das corporações de ofício com a atitude passiva dos fiéis nos cultos religiosos – e tentar afiná-la ao XXI que está a exigir sujeitos dinâmicos, versáteis, criativos, pró-ativos, capazes de gerir relações e aprendizagens.

Essa febre de diagnósticos tem uma articulação bastante estreita com um fenômeno institucional comum às escolas, especialmente as privadas, nas últimas décadas. Trata-se do fato de os familiares dos alunos sentirem-se, por uma série de contingências, autorizadas a pontificar sobre como a escola deve agir na condução da vida acadêmica dos filhos. Resguarde-se que toda parceria entre família escola deve ser estimulada, porém entre parceiros, nenhum dos envolvidos determina categoricamente a ação do outro, desrespeitando assim o olhar diferente, a experiência, o profissionalismo dos educadores.

Essa atitude de algumas famílias teria como fundo o desejo de assegurar complacência para seus filhos. Envolve a busca de acolhimentos afetivos especiais, mesmo quando atuam em desconformidade com os princípios da instituição escolar – projetando na escola a extensão da vida familiar idealizada – e/ou a intenção de garantir prerrogativas de tolerância indefinidamente elástica para as performances acadêmicas dos filhos – cuja função seria poupá-los das frustrações mais prosaicas, concernentes à vida social.

A articulação entre esses dois aspectos estaria no fato de os diagnósticos funcionarem como legitimadores do desejo de distinção latente nas ações das famílias. A eficácia que essa chancela produz repousa na delicada relação mantida entre a escola e o discurso de competência dos clínicos - psicólogos ou médicos. Afinal, constata-se largamente que a definição do campo de especificidade da atuação escolar afrouxou-se, nas últimas décadas, na mesma proporção em que as escolas tentaram atender as dispersas demandas que lhe foram sendo direcionadas. Nessa realidade tão complacente e porosa, não é incomum encontrar, de forma ainda mais destacada do que em outros momentos, a afirmação de um protodiscurso médico e a disposição para certos psicologismos. Portanto, os “diagnósticos” funcionariam como uma chave-mestra para o franqueamento do ambiente escolar a uma série de “discursos” concorrentes e para que sejam depositados ali os desejos de privatização de uma situação que deveria ser, por definição, regida por princípios de coletividade.

A indiferenciação entre a vida social mais ampla e a vida familiar continua a ser um mal entendido causador de distorções terríveis. É necessária aos educadores e pais a consciência de que algo que, indiscutivelmente, a escola ainda pode e deve produzir de positivo na formação de nossos jovens é introduzi-los na dinâmica pública. Do contrário, estimulamos a infantilização quando deveríamos promover o amadurecimento, a dependência no lugar da autonomia, o autoritarismo em vez da tolerância e do respeito.

Pais e mães precisam conter o impulso protetor e controlador e entender que para a formação de sujeitos éticos é necessário também respeitar a autonomia de que a escola é detentora, fundamental para realizar o trabalho de socialização que lhe é devido.

Educadores necessitam ter mais claro que as questões emergentes nesse universo coletivo relativas às alterações perceptivas e comportamentais são de nossa competência e não da família e nem de profissionais “de apoio”. Para isso, é necessário que tenhamos de nos preparar melhor para a gestão de grupos e para acolher as diversidades neles existentes

Silvio Barini Pinto

1 Os dados são do Instituto Brasileiro de Defesa dos Usuários de Medicamentos, levantados com base no ""IMS-PMB" – publicação suíça que contabiliza dados do mercado farmacêutico mundial, publicados pelo jornal Folha de São Paulo em 15/01/2006. Os números são confirmados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, que controla as vendas de remédios no Brasil.