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O restaurador que entregava o piano, zeloso da afinação que acabara de produzir, não conteve a indignação quando pedi que não fechasse à chave o instrumento, pois ficaria à disposição de quem se interessasse – alunos, professores, funcionários, etc. Resignado, despediu-se achando provavelmente que havia ali uma atitude inconsequente... E de certo seria, caso prestasse o instrumento às reverências solenes que a ele são feitas pela tradição. Não que pianos não mereçam respeito. Apenas fui movido pela determinação resoluta de dessacralizar essa potente orquestra condensada e abri-la, literalmente, a experimentações musicais – óbvio – mas não só. Pensava em uma intervenção no espaço escolar. Queria saber que tipo de reações causaria o objeto piano. Que desconcerto haveria de promover na partitura do tempo/espaço escolar. Resultaria produtividade na instalação do dispositivo piano? De que espécie?

Ele até que se integra bem ao décor do casarão vintage. Bem na passagem. Impossível de ser ignorado o piano vertical tipo de apartamento. Sem brilho, marca de pouco renome, fabricação nacional, som honesto, a conferir – foi o que surgiu em uma oportunidade ao acaso quando alguém já não o comportava mais em casa. Podia virar tralha. Desapegou. Catei. É isso que gosto de dizer como educador: sejamos catadores. Catar tem a vantagem de despir o catado de seus significados anteriores, subtraí-lo das relações em que estava ou a tradição lhe impunha. Traí-lo, em certa medida. A atitude primeira do catador é a de insignificar o que se cata (conhecimento, utensílios, situações, sentimentos, arte) para experimentá-lo em novas redes de significação.

Insignificante, o piano veio a significar risco (para o restaurador, sem dúvida, mas também não foram poucos os que me alertavam: vai dar problema!). Prá quê? E eu não respondia. Nem sabia. Qual a utilidade? E eu tergiversava desavergonhado. Vai fazer barulho. E eu tapava os ouvidos. Atrapalha. Como assim? Vai virar bandalheira. Teremos mais starts para fazer o que sabemos, educar.

Aceitar riscos é condição para a experiência verdadeira. Só sabia que havia profanado um dispositivo. Piano-móvel, piano-brinquedo, piano-dispersão, piano-devir. Que devires nos proporcionaria a intromissão inusitada?

Curiosidades aguçadas, dedilhados tímidos e sofríveis, poses para selfies, seria tudo? Bravo! As primeiras melodias apareceram. Quando menos espero, Erik Satie ressoa no meio de uma manhã. Nossa! Era o ex-aluno, agora estagiário, que tocava com despretensiosa desenvoltura. Por quê? Por nada. Levou bronca por estar ocioso. É ócio tocar Gnossienne! Quem sabia que ele tinha esse saber? Se não retornasse à escola onde estudou, se não tivesse havido a invasão do piano, se os riscos não fossem assumidos... a escola seria mais pobre.

Noutro momento, a criança de poucos amigos foi ao teclado e melodiou. E não é que gente de toda idade se aproximou, aplaudiu e colegas a abraçaram depois?! Olha só: ela se viu vista por gente que nem imaginava que poderia se interessar por ela? Será que isso marca? E aquele que ameaçou um blues e, na hora que me viu fazendo a marcação com o estalar dos dedos, estupefatou. Rarará . Pensou que o blues não era tão velho quanto eu. De fato, é mais. E isso não para. Um dia, um intervalo e o jazz-rock se esboçou. Noutro dia, noutro intervalo ele já era acompanhado por um violino (de onde surgiu?). E o jazz-rock evolui por intervalos adiante.

Exploro em público (e não há como ser diferente naquele hall) o mecanismo do piano. Quem viu conheceu o sistema de alavancas que vai da ponta dos dedos do pianista às cordas. Sem treino, vejo hoje adultos e crianças dizendo, a quem recorre ao teclado sem muito jeito, que se toca é com a ponta dos dedos e não com a força da mão, afinal “tem um tal sistema de alavancas”. Dentre esses, já é possível ver que alguns se demoram na escuta de cada nota e buscam um fraseado. Educação dos sentidos?

Aconteceu de uma garota de seis ou sete anos dedilhar uma música, mas emperrar numa sequência um pouco mais exigente. De passagem, um garoto adolescente parou ao lado. Sem gerar qualquer intimidação na pequena, deu continuidade ao movimento, somando seus dedos aos da criança. Ela nem olhou para ele, apenas o seguiu e desemperrou a música. Não se falaram. O gesto sensível garantiu a comunicação. O menino grande seguiu como tivesse apenas ajudado a segurar uma escada para quem precisava subir e não se sentia seguro. Gesto gratuito. Isso pode significar que a consideração pelo outro é natural desse ambiente? Piano disparador, piano analisador...

Hoje ouvi Beethoven. Aprendi, pois achei que era outro compositor. Doutra feita, apressado para não perder aula, houve um concerto de Chopin. Parece que os desafios estão postos. Improvisadamente, há públicos variados, a postos, fruindo sons que não são costumeiramente baixados nos iphones. Juventude alienada? Alienação minha? Basta uma linha de fuga e revelam-se gostos, prazeres, saberes que nos enquadres institucionais ordinários não teriam lugar. Instituição alienada? Novas experiências subjetivas em torno do piano, sociabilidades inesperadas e desejadas pululam. A singularidade dessa experiência seria formadora?

Só sei mesmo que piano, piano vamos fazendo com que o andamento dessa escola seja allegro e fortíssimo na consistência de tudo que vivemos. Basta cosi!

Silvio Barini Pinto

O ENEM em questão – entrevista com direção do CSD

Qual o mérito do ENEM?

O Exame Nacional do Ensino Médio foi criado em 1998 para ser um instrumento de aferição pessoal dos estudantes egressos do Ensino Médio. Em princípio, avaliaria as capacidades cognitivas dos candidatos, ou seja, o saber-pensar, a condição de utilizar conhecimentos objetivos aplicados a situações-desafio que exigissem a conjugação de informações, conceitos, habilidades. Dessa forma, veio a contribuir, durante um tempo, como referência para que a educação praticada no país tivesse como objetivo a formação de estudantes com capacidade de pensar sistemicamente – um dos grandes requisitos contemporâneos para o conhecimento. Como instrumento de avaliação pessoal, a realização do exame era e é ainda facultativa aos estudantes.

Recentemente, o MEC promoveu algumas alterações significativas quanto ao objetivo e formato da prova, não?

Realmente, o que mudou de 2002 para cá foi a concepção da prova e seu destino. Mais e mais o exame foi se acomodando ao estilo dos antigos vestibulares, abordando essencialmente a acumulação de conhecimentos objetivos, pontuais. Tanto que passou a ser assumido como prova seletiva por muitas universidades federais e algumas estaduais e particulares. Porém, a inscrição dos alunos para realizá-lo continua sendo voluntária.

Comparadas as provas do momento de sua criação com as recentes, evidencia-se a dissonância. A preocupação anteriormente era apresentar problemas complexos cuja resolução envolvia a capacidade de refletir, mobilizar informações que muitas vezes eram oferecidas já na proposição enunciada (posicionamento claro de recusa da ‘decoreba’), de articular interdisciplinarmente conteúdos que convergiam para o enfrentamento do desafio e de entender e saber se expressar em linguagens variadas com pertinência. A elaboração das provas originalmente exigia dos examinadores um trabalho de fato intelectual e dos candidatos operações cognitivas bastante aprimoradas.

Quais seriam as motivações para essas mudanças?

O ENEM, na origem, estava em consonância com o espírito da nova LDB que ainda está em vigência. Nessa direção, atuavam as escolas sintonizadas com a contemporaneidade e compromissadas com a renovação, processo que a dinâmica sociocultural torna imperativa. Porém, essa renovação acontecia ao arrepio dos interesses bastante sólidos de sistemas educacionais especializados em preparação para ingresso em vestibulares e de editoras calcadas em produção de materiais didáticos padronizados.

Evidência de que as diretrizes foram mudadas é o fato de que esses interesses por curto tempo contrariados encontram-se atualmente não apenas assegurados mas expandidos. Até mesmo as escolas públicas passaram a adotar materiais apostilados com anuência/incentivo do ministério e das secretarias estaduais. Muitas escolas particulares que vinham trabalhando na capacitação intelectual, na criatividade consistente de seus alunos, passaram a adotar métodos e finalidades pragmáticas para o ensino, cujas matrizes são os cursinhos preparatórios para vestibular dos anos 70.

Com isso, agravaram-se os anacronismos que já marcavam a instituição escolar. É facilmente perceptível que as subjetividades contemporâneas encarnadas mais claramente nos adolescentes e jovens não são mais enquadráveis nos moldes da velha, muito velha estrutura da instituição escolar. Somente é possível sujeitá-los a esse regime praticando uma verdadeira violência. Não é à toa que também reagem agressivamente. Diante disso, são crescentes indisciplina, agressões contra professores, medicalização de crianças e jovens para que se tornem mais “dóceis”. O efeito mais completo dessa realidade ainda está por ser desvelado.

Essa tendência seria então uma distorção?

Por certo, pois deriva da condução de uma política pública que prioriza resultados quantitativos e que abre mão do deslocamento dos rumos da educação em busca da qualidade apropriada para as mudanças significativas que experimentamos. Isso marca uma preocupação muito mais casuística do que estrutural. O olhar não está voltado para o futuro, o que é um erro colossal. Para que o país, em curto prazo, faça boa figura nas estatísticas das avaliações internacionais, opta-se pelo imediatismo. Pena!

O principal dispositivo utilizado para tal foi a transformação dos resultados do ENEM em ranking de escolas. Gradativamente, essa estratégia vem empurrando todas as escolas para a vala comum das práticas ultrapassadas.

Na visão geral, aquelas escolas que persistem em fazer um trabalho alternativo a essa massificação, aquelas que poderiam servir de referência para a revisão do modelo educacional obsoleto, aquelas cujo trabalho vai muito além do que o ENEM é capaz de medir são desqualificadas no ranking do MEC, não importam se públicas ou privadas.

Trata-se de um retrocesso...

Em grande escala, obviamente. E a partir de contradições notórias. O ENEM, mesmo na versão atual, poderia ser um instrumento de avaliação da performance individual dos candidatos mas não das escolas.

A adesão à prova é voluntária para os alunos. Portanto, não há como as escolas garantirem que todos seus alunos formandos no Ensino Médio optem por realizá-la. Muitos não têm interesse no ENEM pois os resultados não interferem em suas escolhas universitárias. Como, então, avaliar na mesma lista as escolas que tiveram adesão da totalidade dos alunos e aquelas em que a adesão foi parcial?

Recentemente, o MEC tentou oferecer os resultados de forma ponderada relativamente à adesão dos alunos. Porém, nenhuma ênfase foi colocada nesse tipo de categorização. O que continua sendo destacado na divulgação é a lista que mistura termos não comparáveis entre si.

Na prática, diante desse equívoco sustentado pelas autoridades e da pressão mercadológica a que são submetidas, as escolas passaram a se empenhar fortemente em fazer com que o número mais amplo possível de alunos concluintes preste o exame. Mais um desvio nas intenções originais do ENEM.

Bem mais nociva ainda é a prática, que também se generalizou, de excluir da escola alunos que se aproximam do final do Ensino Médio e cujas performances não contribuiriam para os resultados da instituição no ENEM. Isso beira a eugenia, o que é repudiável desde sempre, mas especialmente nesse momento em que as diferenças se manifestam muito mais como positividade.

Por outro lado, há uma contradição de base: para que qualquer avaliação resulte eficaz é preciso que sua metodologia seja coerente aos objetivos que orientam as práticas que se deseja aferir. Temos um cenário de diversidades de concepções, métodos e recursos pelo país afora. Porém, o ENEM aplicado a toda a realidade nacional ignora essas diferenças.

Com esse posicionamento, o CSD ignora o ENEM?

Claro que não! Fazer-lhe a crítica, apontar suas contradições e o mau uso dos dados não significa ignorá-lo. Muito ao contrário. Significa estar muito atentos a esse mecanismo.

Nossos alunos são chamados a analisar com os professores as questões do exame, há várias situações na escola para que o regime adotado na realização da prova seja conhecido dos alunos, quando da inscrição, a escola facilita-lhes o processo. Enfim, os alunos são orientados para participar e considerá-lo de fato como um instrumento de avaliação individual. É importante para o estudante saber quais são suas condições frente às exigências mais variadas. O ENEM traz um tipo de exigência específica e o estudante pode estar interessado em checar-se em relação a ela. Isso pode fazer parte da sua construção de metas para seus projetos de futuro além da escolaridade.

O que não significa que corramos competitivamente atrás de posições nesse ranking. Afinal, fazer isso é decretar que nossa finalidade seria o ENEM. Não é! Ele é apenas um meio de averiguar uma parcela dos conhecimentos proporcionados pela escola.

Há algum aspecto dos resultados do ENEM 2010 que possam ser levados em consideração para pensar a realidade do CSD?

Porcentagem de alunos que prestam o ENEM

Os números veiculados servem para o levantamento de hipóteses e para abrir algumas investigações. Comecemos pela adesão. Como explicar apenas 47%, em 2010, de adeptos ao exame? Pode ser que realmente não haja interesse de boa parcela dos alunos em prestar o ENEM pelo fato de seu resultado não interferir no ingresso dos cursos almejados. Pode ser também que haja outras explicações, entre elas, condicionantes externas à escola como as sucessivas adversidades enfrentadas pelo MEC que fizeram alterar agendas, locais de provas, etc.

Mas o fenômeno de adesão relativa não é isolado. Envolve igualmente escolas particulares paulistanas como Colégio Santo Américo, Colégio Santa Cruz, Escola Vera Cruz – para citar alguns nomes consagrados em nosso cenário educacional – com menos de 50% dos alunos inscritos.

Desde 2010, a taxa de participação de nossos alunos já aumentou progressivamente. Hoje, quase a totalidade dos alunos das 3ª séries inscrevem-se no exame e muitos deles utilizam os resultados do ENEM como forma de acesso a algumas Universidades Federais (UFSCAR / UNIFESP) em cursos das áreas de Ciências Naturais, Matemática, Edificações e Projetos

Ingresso em cursos superiores

A nosso favor temos que a quase totalidade dos alunos egressos da educação básica em nossa escola fazem cursos superiores. Vários em universidades públicas. Alguns que buscam cursos mais concorridos têm que render-se a mais um período de estudos suplementares para ingressar. Mas isso é parte do jogo. Quando acontece, expressa a determinação para perseguir em uma escolha bem refletida.

Questões objetivas

Houve, entre os alunos do CSD, uma elevação no índice de acerto em questões objetivas. O curioso é que esse não é um foco de nosso trabalho. Portanto, fica claro que a preparação dos alunos para “pensar grande”, para demonstrar argumentativamente seus entendimentos, para a leitura interpretativa dá conta também da testagem objetiva. O contrário não é verdadeiro.

O que o CSD faz e não é avaliado pelo ENEM?

Essa é uma questão para a comunidade responder. Certamente, as respostas requerem bem mais espaço do que o dessa entrevista.

Silvio Barini Pinto

“Isto é mais que uma festa!”

Amigos da gastronomia sabem que macedônia é uma combinação que harmoniza frutas ou legumes diversos em soluções deliciosamente surpreendentes.

Articular as diferenças é o maior desafio contemporâneo.

Se foram os portugueses que trouxeram ao Brasil a tradição europeia da festa da colheita, é no CSD que a festa junina vira uma macedônia de sentidos e expressa mais que um evento.

Nada forçado. É do propósito educativo de orquestrar diversidades de forma original que nascem todas as atividades em nossa escola. Exercício de curadoria permanente. Operoso, zeloso e prazeroso.

Conhecimento ou é coisa viva ou vira adereço sem porquês. Há que se botar o pensamento a bailar.

Para essa festa, colhemos brincadeiras e as tornamos coreografia, apanhamos histórias medievais e as transformamos em brincadeiras, subsumimos tarsilas em narrativas mirins sobre cucas e outros bichos, das justas de cavaleiros fazemos um balé que cita os jovens de maio de 68 na Primavera de Praga e a Revolução dos Cravos que balançaram autoritarismos opondo flores às armas, furtamos dos salões as danças renascentistas e as subvertemos em cirandas, como a das mulheres pernambucanas que dançavam e cantavam na esperança de que seus homens retornassem do mar. Na rede, veio de lá também o maracatu que juntou adolescentes e crianças na batida que se infiltra na pulsação até dos mais sisudos. Só ficou de fora quem resistiu com todas as forças e vergonhas às chamadas para fazer parte do carnavaléco ao final de cada apresentação – encarnação da tela de Brueghel, em que brincam numa aldeia crianças, moços e velhos indistintamente envolvidos. Mas nem nessa comunidade medieval representada pelo pintor houve quadrilha com mais de cem pares formados na ocasião e dançando espontaneamente.

Sabe-se lá, mas pelo jeito estamos a produzir coisa incomum.

Macedônia é uma imagem colhida da culinária, mas antes foi ponto de referência da fusão original de culturas que acabou por difundir o helenismo e todas suas riquezas culturais pelo mundo afora. Alexandre, o Mega, teve seu papel nisso tudo.

Sem alexandres nem nada mega, talvez trilhemos no CSD experiência educativa que faça sentido, primeiro para nós mesmos, e, casualmente, para quem nela queira colher inspirações.

O sabor inigualável das macedônias depende do desejo dos degustadores de requintar paladares. Provar gostos improváveis. Abertura para a diferença!

“Isto é mais que uma festa!” – comentário colhido de uma criança ali presente. Gente que sabe dizer com muitos significados. E que soube curtir, saborosamente, o cuscuz paulista – espécie de macedônia combinada com farinha de milho e outras iguarias. Era um curumim kalapalo sentado à távola redonda aguardando nova rodada de escravos de Jó...

Silvio Barini Pinto

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