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A partir do meu posto de observação, como educadora, mãe e profissional de saúde, fico me perguntando o quanto a agressividade, as atitudes anti-éticas e desmedidas das crianças, adolescentes e jovens têm sua origem nos modelos comportamentais dos adultos. Apesar de entender que tais modelos certamente contribuem nesse processo, acho um tanto simplista analisarmos tal fenômeno somente a partir desse ponto de vista. Na medida que concebemos sujeito como aquele que funciona em duas instancias – a consciente e a inconsciente, sendo, desde sempre formado pelo conjunto de relações intersubjetivas, vínculos, vivencias e significações a que é submetido, parece-me razoável pensarmos no quanto, para além dos modelos comportamentais, temos poupado essas crianças, jovens e adolescentes de possibilidades efetivas de assumirem um lugar mais maduro e responsável nas relações que estabelecem.

Acredito que todos nós: família, escola, sociedade de modo geral, ao negarmos experiências que consideramos destituídas de sentido para a criança, ao valorizarmos exageradamente a livre expressão, o “aprender prazeroso”, acabamos de alguma maneira, mantendo toda uma geração no lugar do prazer, da impulsividade, do caos fundador que precisa ser superado para que se constitua um sujeito equilibrado e apto ao convívio social saudável.

Na busca de romper com um autoritarismo exagerado, de promover uma educação e relações democráticas, de tornar o processo de aprendizagem algo “gostoso” e agradável, polarizou-se a questão e, de novo, nós - agora adultos, somos vítimas do autoritarismo, porém, não mais de nossos pais, mas sim de nossos filhos/alunos – das crianças, jovens e adolescentes com quem nos relacionamos.

É importante lembrarmos que todas as grandes aquisições e criações humanas foram frutos de necessidades, de frustrações, de dificuldades – essas é que impulsionaram à busca e à criação. Teoriza a psicanálise sobre a importância da castração – ela ocupa papel fundante na constituição subjetiva. Castração, frustração, dificuldades, desafios... riquezas que podemos proporcionar àqueles que estão em formação, que estão sedentos de referências. Para criarmos é preciso haver necessidade, para transgredirmos é preciso, em algum momento, estarmos submissos à lei; para adquirirmos virtudes é fundamental lutarrmos e nos submetermos a situações que não nos trazem o prazer imediato da satisfação de um desejo, mas, trazem o prazer da conquista - o sabor de vencermos limitações, de superarmos nossos próprios limites; de contermos nossos impulsos.

Temos hoje em nossa frente, toda uma geração de jovens velhos. Crianças, adolescentes, jovens cansados, sem vigor, sem espírito de luta. Sujeitos acostumados a viver facilmente – estudar quando tem vontade ou interesse, falar aquilo que querem quando querem e como querem, descartarem o que não gostam mais esperando que alguém os satisfaça novamente... Podemos pensar: - Que exagero, tratam-se de “crianças”. Crianças crescem e, se não aprenderam a dura e feliz realidade de que a vida não é só prazer acabam por desfazer-se de tudo e todos que osimpedirem de alcançar esse tão almejado prazer: um filho, uma namorada, um índio, uma empregada doméstica, os pais... ou simplesmente agridem, transgridem pelo prazer de fazê-lo.

Pergunto-me, como educadora, o quanto nossas escolas também não tem contribuído com isso na medida em que, em muitas delas, a autoridade tem sido colocada de lado como algo piegas e démodé. Ou, ainda pior, acredita-se exerce-la sem perceber que de fato ela se encontra absolutamente desmoralizada dentro da instituição. Vejo professores, coordenadores e diretores falando em termos de igualdade com as crianças e adolescentes... Não. Não acredito que estejamos contribuindo para a formação de sujeitos críticos, ativos e envolvidos socialmente, mas sim de sujeitos absolutamente egoístas, autocentrados, que em prol de seu prazer e benefício fazem tudo o que for preciso independente do quanto prejudiquem os outros com quem supostamente estabelecem vínculos. Como construir um convívio ético sem supor o cultivo de valores e virtudes? Como cultivar tais valores e virtudes sem que se façam presentes lutas, renúncias aos desejos, pequenos sacrifícios? Como podemos colocar o bem comum acima dos interesses pessoais se não proporcionamos aos nossos filhos/alunos um espírito de renúncia nos pequenos atos cotidianos quando esses podem prejudicar outros?

Estamos tão obstinadamente tomados por essas ilusões de uma vida, de um ensino, um trabalho prazeroso que acabamos por abrir mão de uma parte de nossas responsabilidades de educadores e pais - aquela que é mais difícil, onerosa, trabalhosa/não nos traz prazer – exercer a autoridade, estabelecer e fazer cumprir regras e limites, proporcionar a castração necessária para a fundação subjetiva... é , tudo isso é deveras trabalhoso. É muito mais fácil e agradável dizer um sim, justificar uma atitude inadequada, sentir-se querido sempre, incondicionalmente. Infelizmente, dessa maneira, temos colaborado para esses atos desmedidos que temos assistido e dos quais todos: nós e eles (crianças e adolescentes) somos vilões (algozes) e vítimas.

Simone Ribeiro Cabral Fuzaro

A participação de crianças e jovens na formação de comunidades virtuais, principalmente por meio da Orkut, tem gerado ruídos e impasses no ambiente escolar.

Muitas vezes, o objetivo dessas comunidades é zoar com alguém. Geralmente, a pessoa zoada é alguém da escola – colega, professor – ou mesmo a própria instituição escolar. Títulos como Nós odiamos fulano, ou Vamos dar porrada em cicrano ou Quem acha a escola X uma droga? são comumente encontrados nessa mídia aberta para a livre manifestação. Com tantas incitações, os xingamentos e difamações se multiplicam nos comentários dos freqüentadores de tais comunidades aos olhos de quem quiser ver.

Bullyng digital é a expressão empregada para caracterizar esse fenômeno. Trata-se de uma espécie de apedrejamento virtual. Como enfrentá-lo? Quais seriam os papéis da família, da escola, ou mesmo das autoridades judiciais com relação a esse comportamento que se difunde entre crianças e jovens? Diante da novidade, as respostas até agora produzidas têm girado em torno da interdição do uso do computador, feita pelas famílias como sanção pela conduta recriminável, ou, por parte das escolas, uma pregação moral tentando coibir as iniciativas desse tipo. Isso é tudo. E nada!

É verdade que não há uma novidade absoluta na prática desse tipo de violência. Discriminar, colocar alguém na berlinda ou fofocar na turma sobre o comportamento de um indivíduo são situações que, embora condenáveis, qualquer geração já experimentou.

Mas, então, qual é a diferença do que é feito pela internet?

Talvez uma distinção seja o alcance público imensurável dessa tecnologia de comunicação, enquanto que o espaço de difusão da fofoca ou da discriminação grupal esgota-se no próprio grupo ou, quando muito, transborda para um contexto um pouco mais ampliado ao qual o grupo pertence. Além disso, num ambiente restrito, quase sempre a vítima pode defender-se, se não por si mesma, com a ajuda de terceiros e autoridades.

Na internet, é comum o fato de a instituição ou pessoa alvo dessas violências ter conhecimento da existência de uma comunidade que a discrimina e a ameaça moralmente depois de ela ter sido freqüentada por um bom número de pessoas. Ou seja, a extensão das conseqüências é muitas vezes impossível de dimensionar e a neutralização dos efeitos ainda menos provável. Qualquer um de nós pode ser atingido por uma ação como essa – o que nos põe em situação de alerta permanente, estado próximo da paranóia.

Isso é bom para a vida social? Ou desencadeia uma patologia desagregadora?

Não é o caso de cometer o erro lógico de condenar a tecnologia pelo uso que dela é feito, mas nesse espaço digital não há regramento preestabelecido, não há códigos de postura definidos, ou seja, trata-se de território livre. E esse é o barato! Ali entra quem quiser, sai quando bem entender, deixa o recado que lhe parecer mais irreverente que os comentários anteriores, quase sempre ofensivos, e isso aparentemente não implica conseqüências para os detratores. Será?

Se para os freqüentadores as implicações não são facilmente visíveis, para aqueles que são alvo dessa hostilidade os constrangimentos e prejuízos morais são inexoráveis.

É possível que no campo privado das famílias o tratamento venha a ter versões cada vez mais criativas para o fenômeno ou, então, venha, num outro extremo, a ser tratado com descaso. O fato é que, como se trata de um problema social, não é possível confiar somente nas respostas que as famílias lhe dêem. A escola tem sim que se apropriar do tema e elaborá-lo com os alunos nas dimensões mais profundas que ele traz.

A análise da ação dos meios de comunicação na construção e destruição da imagem pública de pessoas e/ou instituições; as motivações que já alimentaram esse tipo de jogo midiático; as conseqüências produzidas por tais campanhas; o significado que isso tem numa sociedade que hipervaloriza a imagem, a aparência, o espetáculo; as alternativas solidárias, construtivas e agregadoras das diferenças que existem na formação de comunidades virtuais de intercâmbio de conhecimento, de atuação frente a problemas específicos comuns ao planeta – seriam esses alguns dos temas em torno dos quais se poderia praticar a investigação com os alunos, ao invés de submetê-los a discursos estéreis de condenação moral do bullyng digital.

Trata-se, portanto, de recorrer a áreas de conhecimento distintas para abordar o fenômeno por óticas diversas e tentar, coletivamente, construir uma melhor intelecção sobre ele. Esse tipo de tratamento evidencia a necessidade da formação ética dos indivíduos para que tenham elementos que subsidiem suas ações, possibilitem escolhas refletidas e a responsabilização por elas.

A lei, bem, a lei... Os legisladores não deixarão de inventar recursos que visem à inibição desse tipo de prática, tão pouco de regulamentar penalizações para os autores. Entretanto, valeria a pena nos esforçar por produzir reflexões que, de alguma maneira, possam tornar corrente a complexidade que envolve o fenômeno para que eles também, os legisladores, se vejam obrigados a abordá-lo de forma ampla

Silvio Barini Pinto

Um avião de pequeno porte e dois lugares sobrevoa uma região aparentemente desabitada e um de seus tripulantes, após saciar a sede, atira inadvertidamente pela janela uma garrafa vazia de Coca Cola. Um nativo do local acaba por encontrá-la e, nesse exato momento, inicia o que pode ser tomado por uma alegoria do processo de conhecimento: alheio a conceitos como vasilhame, refrigerante, garrafa ou Coca Cola, aquele objeto é todo novidade - e, como tal, convite ao acionamento de uma quantidade infinda de dispositivos de significação.

Esse objeto, que em nosso universo cultural é dotado de significado tão convencional que já não leva à ativação de qualquer operação cognitiva mais complexa, provoca, no indivíduo em questão, a inquietação característica da decifração e do ato de conhecer.

Mas, o que interessa momentaneamente no fragmento do filme "Os deuses devem estar loucos" é a maneira pela qual os significados desse objeto estranho vão sendo construídos e reconstruídos: relacionando-o ao fato de ter caído dos céus, relacionando-o a objetos com aparência aproximada, relacionando-o a utilidades casuais tais como arma, instrumento sonoro ou utensílio de cozinha..., enfim, a depender da série de relações estabelecidas - sejam elas compostas por signos previamente conhecidos ou dados ao acaso - sua significação vai variando. E o feixe de significados produzidos através desse procedimento é tão vasto e fecundo que seria uma atitude redutora, no mínimo ingênua, ainda pensar que o significado "garrafa de Coca Cola" pudesse ser o único verdadeiro.

É, portanto, valendo-se da mobilização de repertórios sígnicos - ou seja, através de uma operação linguística - que o personagem vai nomeando e inscrevendo o objeto, antes estranho, em sua vivência e na de sua comunidade. E o que é mais intrigante: os significados do feixe convivem entre si, misturam-se e dão origem a novos conjuntos.

Entretanto, apesar da curiosidade que desperta, essa alegoria fílmica representa tão somente o ato mais simples da inteligência humana. Nu e cru. Essa experiência poderia ser vivida por uma comunidade cuja comunicação se desse de forma muito elementar, através somente de gestos e sons guturais, por exemplo. As estruturas sociais mais complexas exigem um nível mais elevado de elaboração da linguagem. E essa elaboração se vale das diversas técnicas disponíveis nas diferentes situações culturais. Por isso, atentemos também, ainda que muito genericamente, ao papel que as tecnologias empregadas nos processos de construção de significados exercem sobre o pensamento e a linguagem, componentes-chave da 'motherboard' da inteligência humana.

Rememoremos.

Nas sociedades em que a oralidade predomina como forma de narrativa de seu presente e de evocação de seu passado, a memória, enquanto técnica de repetição - primeiro do vivido, depois do ouvido/transmitido -, assume uma importância fundamental. Lembremos apenas da autoridade de sábio concedida aos aedos na Antiguidade por 'salvar' os gregos da ignorância sobre seu próprio passado. Em tal caso, o esforço de conhecimento apóia-se nas variadas técnicas mnemônicas, que se ocupam de fazer com que a "repetição" seja tomada como revelação metafísica. A lembrança não enseja, pois, qualquer espécie de contestação: o passado funciona como legitimador do vivido. A garrafa de Coca Cola nessa circunstância vê seus significados submetidos às significações que tenham sido produzidas num passado existente ou inventado mas, de qualquer forma, tomado como absoluto - diga-se, para além do Verdadeiro e do Falso. Mas não para além do Belo - condição primeira de validação de uma narrativa apoiada na poesia, na música, na dança, nos rituais.

Suponhamos agora uma situação social diferente: aquela em que a escrita toma o assento da oralidade e a capacidade de documentar cartorialmente substitui a necessidade de desenvolvimento de técnicas mnemônicas. Aqui a memória repetidora é objeto de desconfiança e cede sua importância para o exercício de uma linguagem mais argumentativa, bastante vinculada à ascensão da racionalidade como artifício modelador do pensamento humano. Agora os sistemas de argumentação lógica funcionam como dispositivos-chave e são tão mais convincentes quanto mais estreita é sua urdidura - passível então de investigação crítica, pois materializada e disponível no texto escrito. Além disso, uma vez que não precisa necessariamente recorrer ao passado ou à tradição, a legitimação de seus enunciados é principalmente arrancada da atuação prática no tempo presente - aquilo que irrefletidamente se costuma chamar de realidade: e é assim que se potencializa o valor do aqui e agora.

A racionalidade lógica em suas diversas versões e sua verificabilidade prática nas condições prescritas configuram tanto o método de produção quanto o critério de avaliação da competência do discurso produzido nesse crochê. A resultante dessa modalidade de intelecção do mundo: o "discurso competente", porque lógico, bem enredado e 'demonstrável' é instituído como verdadeiro (com vocação para único). Vemos como passa a fazer sentido indagar sobre verdade ou falsidade, distinguir entre realidade e ficção, despreocupar-se em relação à beleza - a menos que sua definição coincida com a lógica racionalista.

A significação da garrafa de Coca Cola, dessa maneira, resulta do seu enquadramento em algum sistema explicativo. Tomemos alguns exemplos dentre uma escala vasta, mas finita: nosso objeto de conhecimento seria formatado, seja pelo empirismo mais rasante que a toma pela literalidade (ela é o que parece ser e 'revela' que é: garrafa de Coca Cola), seja pelo mais técnico (seria, por exemplo, algo entre um cone e um cilindro para a geometria euclidiana, se essa inexatidão não a tornasse indefinível), seja por uma abstração um pouco maior que a inscreve na ordem da ideologia (quando pensada como emblema do 'imperialismo americano', por exemplo), seja pela ordenação classificatória de certa História da Arte quando a cataloga como 'ready made' numa atitude artística pop.

Notemos que nenhum dos significados escapa de ter seu suporte em algum modelo explicativo. Apenas é através desses modelos que sua suposta "razão de ser" se faz revelar. Daí haver certo empenho para que o significado alcançado seja duradouramente o mesmo, pois disso depende a coerência da lógica argumentativa. E é pelo mesmo motivo que o acaso acaba expulso do pensamento por longos séculos.

Percebamos também que decorre dessa circunstância - ainda como uma necessidade interna do funcionamento de tal modalidade de pensamento - a hierarquização dos significados -, ou seja, o julgamento de valor (teste de competência ou veracidade) favorecerá aquele significado que puder ser demonstrado praticamente. Insistamos: o presente é a medida para tal demonstração.

Agora, imaginemos.

Tomando à risca a expressão de Truffaut de que "o cinema é mais interessante que a vida", partamos para um mundo que poderia estar situado entre as vibrações luminosas que emanam do projetor de filmes e as imagens voláteis que frequentam a tela. Uma situação em que toda linguagem é a linguagem cinematográfica: reinaria o delírio! Tudo é movimento, não há pausas. O tempo é louco, não apenas pela ausência de repousos, mas também por não caminhar do passado para o futuro; afinal, todos os deslocamentos são possíveis. E os lugares? Um mesmo pode ser vários, vários podem ser o mesmo!...

A garrafa de Coca Cola raramente terá igual significado em duas situações cinematográficas distintas - o que pode ocorrer inclusive várias vezes num único filme. Aliás, ninguém pode esperar dela um significado 'imanente' - para desespero dos espíritos mais pragmáticos. Dela se fará significado apenas enquanto elemento numa composição; ou seja, será uma imagem que para comunicar alguma coisa terá de ser colocada em relação com outras imagens; então, o que importa é esse conjunto de elementos, cores, luzes, enquadramentos, ação, falas, músicas, cortes, seqüências, etc. Portanto, mais do que em qualquer situação antes exposta, da garrafa de Coca Cola, nesse universo linguístico, ninguém dirá que é, mas que há de ser. Suas significações produzem-se num contínuo devir.

Nessa modalidade haveria hierarquia de significados? Certamente que não. A arbitrariedade é a regra. O que implica não haver nenhuma temporalidade tutora; vale dizer, nem passado nem presente autorizam ou desautorizam significados. Eles apenas escorrem de maneira movediça pelo terreno do vir-a-ser.

E o espectador? Não se exigiria demais dele? A resposta seria afirmativa apenas se o cinema, ao mesmo tempo que produzia sua sintaxe, também não produzisse o seu receptor - dotado de uma percepção sensível ao movimento, capaz de acompanhar a velocidade das alterações semânticas. E não percamos de vista que é esse jogo semântico caleidoscópico que, em grande parte, caracteriza o prazer do espectador. Entretanto, podemos já deixar assinalado algo a que voltaremos: a unidirecionalidade da mensagem cinematográfica. Ainda que o fenômeno comunicacional não se reduza ao determinismo emissão – recepção, a interatividade possível entre o espectador e o filme projetado somente interfere na ressonância das compreensões do espetáculo cinematográfico. Não há alterações perceptíveis na enunciação original. O filme voltará a ser projetado e repetirá incessantemente sua história, independente das ressonâncias produzidas.

Acendamos as luzes.

Pois bem, de fato, nenhuma dessas modalidades linguísticas vigorou historicamente de forma solitária. A inteligência humana constitui-se num campo de forças no qual atuam simultaneamente todas as potencialidades de intelecção; somente ocorre que determinadas estruturas sócio-culturais estimulam e possibilitam circunstancialmente a emergência de uma das vertentes em concurso. E enquanto se alternam essas forças, novas subjetividades têm origem. Podemos hoje afirmar, apoiados na investigação de neurofisiologistas que evitam determinismos indesejáveis - especialmente aqueles que tomam a inteligência por uma entidade biológica - que os circuitos cerebrais não pré-existem aos estímulos, e que o herói do mito platônico se deixasse sua caverna de sombras para entrar numa sala de exibição cinematográfica provavelmente sucumbiria a um colapso dos sentidos. Portanto, de quando em quando nossas faculdades perceptivas e intelectivas vão sendo alteradas.

O cinema, apesar de ser uma tecnologia comunicacional (o que envolve também a sua gramática) que possibilita ir além dos quadrantes da lógica, flexibilizando o pensamento, ainda é um meio de comunicação que partilha com a escrita uma só, mas importantíssima, característica: está estruturado sobre um plano único que é o da proposição e do discurso. Ele não pode reinstaurar a comunicação aberta, como acontece nas comunicações interpessoais em que os envolvidos definem as bases para o entendimento recíproco.

Essa é uma limitação que nenhuma mídia vai solucionar sózinha - afirmação que pode ser relativizada pelo fato de haver quem considere que o zapping (troca de canais na TV através de controle remoto) e o zipping (aceleração das imagens de trechos de filmes em vídeo) caracterizam um exercício de interação. Mas, ainda assim, o que realmente otimiza os canais de interatividade entre os sujeitos em comunicação é a conjugação de tecnologias. O que não constitui novidade. Lembremos algumas dessas conexões: rádio/TV-telefone-gravador-fax. O aparato eletrônico multimídia sediado nos computadores pessoais não é senão o expoente mais recente e desenvolvido dessa busca de desnuclearização da comunicação.

Mas se sob esse aspecto a tecnologia informática pode ser pensada como apenas um instrumento que aperfeiçoa um fenômeno comunicacional que já vinha se desenvolvendo, a sua disseminação deixa entrever alterações significativas na ordem da inteligência, no universo do comportamento, na esfera da economia... enfim, uma nova etapa no processo de hominização parece estar tendo lugar no tempo que vivemos.

Mas se sob esse aspecto a tecnologia informática pode ser pensada como apenas um instrumento que aperfeiçoa um fenômeno comunicacional que já vinha se desenvolvendo, a sua disseminação deixa entrever alterações significativas na ordem da inteligência, no universo do comportamento, na esfera da economia... enfim, uma nova etapa no processo de hominização parece estar tendo lugar no tempo que vivemos.

Naveguemos.

Mesmo quando fazemos o chamado 'uso pouco inteligente' do computador, dele nos servindo apenas como um similar de máquina de escrever, na verdade algo de interessante já acontece. Exatamente ao contrário dos escritores e jornalistas que reagiram quando da introdução da máquina de datilografar nas editoras e redações, questionando a padronização e o comprometimento da naturalidade da escrita, os usuários de computador, de maneira geral, afirmam a facilitação da escrita, a desinibição proporcionada pela agilidade de correção, mudança e rearranjos no texto. Só por isso já podemos intuir que houve mudanças. A praticidade de consulta e transporte de nossas próprias anotações escritas, gráficas ou icônicas é uma alteração ainda mais incontestável.

Fazer o mesmo com informações de fontes variadas, à distância e em tempo mínimo, já é, então, fascinante. E é aqui que acreditamos estar realmente a diferença introduzida pela informática na estruturação do pensamento: a formação de uma rede ilimitada de comunicação entre usuários de computadores. Através dessa rede se torna possível formar comunidades de interesse, discutir on line questões específicas com especialistas, ou simplesmente navegar.

Na verdade, o computador funciona como um agenciador de uma série de tecnologias de mediação comunicativa: telefone, fax, vídeo, câmera e som. Mas, ao mesmo tempo, permite que também os usuários sejam agenciadores num processo coletivo de produção e circulação de conhecimento sem limites, pois os lança em um universo aberto de troca de informações que inegavelmente traz estimulações mais diversificadas para o pensamento. O entendimento daquele que seria nosso objeto de busca é quase compulsoriamente contaminado pela variedade de perspectivas que sobre ele se projetam e que podemos encontrar numa rede planetária de comunicação. E, mais ainda, essas tantas possibilidades acionam continuamente outros interesses que, como janelas, apresentam paisagens que nos seduzem para um nomadismo virtual pelo conhecimento. E se tomamos de empréstimo o termo nomadismo ao invés de usarmos viagem, é porque não há necessariamente um ponto de partida e outro de chegada. Eis um conhecimento que se faz por descaminhos. Ou seja, o acaso foi reintegrado - não obrigatoriamente no pensamento, mas no próprio procedimento usado para conhecer.

Interesses multiplicados e capacidade de acesso a informações de qualquer natureza, de qualquer domínio de pesquisa, já seriam bons indícios para pensar que o saber distribuido em áreas de especialização e construído sobre uma lógica de pré-requisitos - que durante tanto tempo vigorou quase hegemonicamente - vive momentos difíceis. Essa dificuldade não vem se produzindo somente através de algum combate epistemológico. Na verdade, ela se instala mais efetivamente na própria experiência do usuário da rede de comunicação, quando o ensino, a pesquisa e a divulgação estruturada de forma setorizada são confrontados com seu procedimento de navegação pelo conhecimento expandido.

Podemos inferir a partir da reflexão sobre o alcance dessa tecnologia intelectual, que dela resulta também uma nova concepção de espaço aplicado ao conhecimento. Não se trata de um espaço com territórios delimitados, com fronteiras estabelecidas e bem guardadas. A imagem que melhor convém a esse novo espaço do conhecimento remete a uma topologia em que tudo funciona por proximidade, por contiguidade, na qual não há trajetórias previamente delineadas. Portanto, diríamos que essa rede não ocupa nenhum espaço, mas que ela própria se projeta como um espaço em constante construção e renegociação. O fato de ela não possuir nenhum centro fixo, determinado, contribui para reforçar essa imagem. Daí deriva nossa compreensão de que o nomadismo a que o navegador da rede se entrega é essencialmente virtual e que o espaço do conhecimento pelo qual ele navega é criado a partir de seus deslocamentos.

No que diz respeito ao campo linguístico que esse fenômeno comunicacional institui, tomemos apenas dois aspectos que podem ajudar a balizar o raciocínio: o recurso a simulações de situações e procedimentos e a viabilização de comunidades virtuais múltiplas de produção de inteligência coletiva.

Os usuários mais adaptados fazem um uso mais corrente dos recursos de simulação. Através de jogos ou softwares de apoio profissional, experimentam diferentes situações que estimulam sensações muito variadas - em maior número e de forma mais intensa que na “realidade empírica” - e exigem, muitas vezes, rapidez na tomada de decisões. Nesse caso, nem sempre será a lógica o recurso mais acionado para essas operações; em grande parte das vezes a intuição - compreendida de forma ampla - é que as orienta. Tudo isso nos leva a pensar que a simulação pode ser um potente instrumento de auxílio à imaginação. Com efeito, essa tecnologia, através de sua capacidade de registro, sua potência de cálculo e seu poder de figuração visual, pode verdadeiramente contribuir para simularmos e manipularmos modelos mentais muito mais facilmente do que quando estamos limitados pelas falíveis capacidades de nossa memória humana, que acaba recorrendo com muito mais freqüência aos sistemas lógicos já conhecidos como ferramentas do pensamento.

Não é menos relevante a possibilidade de criarmos virtualmente um cenário em parceria com outras pessoas e negociar as transformações que nele queremos introduzir, segundo causalidades diversas. Ressalte-se ainda que podemos compor essa realidade virtual como uma obra de arte, através das preocupações estéticas que convierem a nós e a nossos parceiros.

Constituindo-se como uma rede de redes, esse novo espaço, que é o espaço do saber, convida incessantemente a produzir comunidades de interesse, cujo objeto é o conhecimento. Qualquer que seja o núcleo original desse conhecimento a ser construído coletivamente, o pertencimento a uma comunidade autoriza qualquer de seus membros a propor códigos de comunicação para o funcionamento do grupo. Esses códigos, além de caracterizarem uma certa ética - regulando comportamentos, estabelecendo cooperatividade, etc. -, poderiam criar livremente modelos de significação múltiplos, cuja validade dependeria somente do acordo entre os integrantes do grupo. E, imaginando que poderíamos transitar de um coletivo de interesse a outros, cada vez mais nos acostumaríamos a circular por diferentes referências de significação.

Retomemos a garrafa de Coca Cola: seu significado na rede pode variar de acordo com a diversidade de comunidades virtuais que frequentamos, sendo ainda que o ingresso de um novo membro em qualquer uma dessas comunidades pode implicar uma ressignificação do ícone ou conceito garrafa de Coca Cola. Nessa ideografia, os ícones, conceitos, imagens, sinais sonoros convivem em regime de igualdade: não há hierarquia entre eles. Se em parte essa já era uma condição do cinema, não nos esqueçamos que a produção do enunciado em um filme é em grande parte definida no final cut, ou seja, no término da montagem. Após isso, qualquer ressignificação somente ocorrerá nas cabeças dos espectadores, o que não alterará a mensagem fílmica. Ela se repetirá sempre enquanto emissão. Nas comunidades virtuais de produção de conhecimento, pelo contrário, a repetição de um procedimento ou de um percurso pode sempre introduzir uma diferença.

Entre Eldorado e São Paulo, deslocamentos do inverno de 96.

Silvio Barini Pinto

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Filmes:

Os Deuses Devem Estar Loucos.
Dir. Jamie Uys, 1980, África do Sul.
(disponível em vídeo)