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Um poema em prosa do século XIX narra a imprudência de um vendedor de vidros que tentara comercializar seus produtos em um bairro pobre. Acabou escorraçado pelas escadas por morador do sexto andar que praguejava algo assim: “Como ousas vender vidros transparentes em lugares como o nosso? Como ousas trazer-nos vidros que não embelezam a vida? Os queremos rosa, vermelhos, azuis...”. Tombado com sua carga vulnerável às costas. Ambos quebrados, e ainda a receber vaticínios em forma de chiste: “A vida com beleza! A vida com beleza!”, lhe era repetido aos berros enquanto se afastava.

Vejam que foi ao cotidiano ordinário que o poeta recorreu como partida para a construção lírica. Não se socorreu em nada sublime. Quase ao contrário, a reação do sujeito que agride o mau vidraceiro chega a ser vil, perversa. Por outro lado, é justo o grotesco da situação que nos põe a pensar que de fato pode ser uma ousadia imprudente não introduzir nenhuma corzinha na vida mundana sem graça nenhuma. Pronto, com isso foi universalizada a percepção. Sem, contudo, reduzir significados.

Pois cá estou eu a me assemelhar ao mau vidraceiro do poema. Num mundo de espetáculos e performances, de brilhos e cores, de tridimensionalidade holográfica que pode ser experimentada diante de nossa TV, ouso eu, pobre incauto, trazer para vocês um filme preto e branco, silencioso (embora musicado nas exibições), que não conta nenhuma história grandiosa ou engrandecedora. Espero não rolar escada abaixo antes mesmo de propor a experiência...

Teremos pela frente o filme de um sujeito que resolveu revelar aos espectadores como se constrói uma narrativa cinematográfica. Desistente de fazer o cine-verdade - documentários que afirmavam uma tomada da realidade como única e verdadeira para legitimar o regime político a que servia, propôs-se afirmar a linguagem cinematográfica como construto subjetivo, tal como qualquer outra.

Basicamente, o filme apresenta uma cidade desde seu despertar até o recolher-se. Entretanto, o faz por meio de um jogo metalingüístico. Ao mesmo tempo em que constrói sua narrativa, vai contando ao espectador como ele faz isso. Para tanto, o diretor cria para si um alter ego, uma personagem cinegrafista que seria o capturador das imagens da história contada; nos conduz até o mecanismo ótico de sua lente; nos faz sentir o ritmo da manivela que movimenta o filme no interior do chassi da câmera. Mostra os bastidores da edição.

Nisso, é didático. E como toda narrativa didatizada, requer tolerância de quem já entendeu tudo desde a primeira enunciação. Por favor, sejam condescendentes com a repetição...

Mas o diretor também complica. Porém com sutileza. Uma atenção mais dedicada nos fará perceber o jogo que faz para construir significações, ou seja, como escolhe serializar as imagens que captou. Permitirá-nos ver que aproxima planos distintos que, à primeira vista, não teriam relação nenhuma. Logrará nos levar à constatação de que algumas dessas aproximações se dão por vizinhança, outras por disjunção. E isso pode se alternar durante a narrativa. Complexo?

O complexo não exige tolerância, exige persistência, determinação. É, por si, desafiante.

O desafio, pois, está na proposta de que, durante a exibição, cada um busque registrar como essa história simples é contada no filme. Quais são os recursos empregados - sequência de apresentação das imagens, variação de ritmo na montagem, enquadramentos distintos... Além disso, para nossa reflexão posterior, importará tentar identificar onde esteve a câmera para captar as imagens que nos estão sendo mostradas. Esse convite é feito pela personagem cinegrafista a cada vez que aparece, mas não se reduz a isso. Imaginá-la quando não é tornada óbvia é nossa intenção também. Aí talvez morem as diferenças...

Assim, começamos nossa semana de replanejamentos. Partimos agora de algo problemático para nos experimentar na construção de problemas para investigar junto com os alunos. Prosseguiremos, na segunda etapa dessa proposta, com o diálogo reflexivo para aquecer nossas estratégias de interatividade com os grupos nas salas de aula. Criticaremos os modos dessa proposição para depurar formas de mediar aprendizagens que empregaremos na prática educativa. Estamos em regime de ensaio e prospecção.

Pois bem, depois desse exercício, vocês podem me empurrar pela escada. Por certo, terão bem mais motivos que o morador do sexto andar que não se conformou com os vidros translúcidos. Mas não esqueçam a vinheta, pois ela é muito instigante: “A vida com beleza! A vida com beleza!”.

Lá de baixo, sem constrangimento nem ódio, lhes responderei que a beleza talvez não esteja apenas no colorido. De tanto uso, as cores têm composto estética de consumo rápido. Uma das manifestações do belo, no contemporâneo, pode se instalar no modo de dispor elementos já conhecidos, na maneira inusitada de narrar histórias já tateadas, na curadoria criativa e consistente de nossos repertórios coletivos. Pronto, repetição e diferença se conciliam naquilo que estaremos a produzir nesse tempo de redefinir rumos e itinerários.

Convido-os ao trabalho!

Silvio Barini Pinto

SP 31/07/2013 – Replanejamento CSD

Filme: Homem Com Uma Câmera, 1929 - Direção: Dziga Vertov
Poema em prosa: O Mau vidraceiro - Charles Baudelair