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Se meu mundo cair, então
Caia devagar
Não que eu queira assistir
Sem saber evitar
Cai por cima de mim
Quem vai se machucar
Ou surfar sobre a dor até o fim

Cola em mim até ouvir
Coração no coração
O umbigo tem frio
E arrepio de sentir
O que fica pra trás
Até perder o chão
Ter o mundo na mão
Sem ter mais onde se segurar
Se meu mundo cair
Eu que aprenda a levitar

O último verso da canção chamada Se meu mundo cair, de José Miguel Wisnik, parece recomendar a leveza para lidar com a contemporaneidade que, sob o impulso do desenvolvimento, da evolução, transforma inapelavelmente em escombros todo e qualquer signo que se apoie em tradições. A construção do futuro, nessa perspectiva, partiria a cada dia de um marco zero, desconsiderada a história e a vida social como acúmulo de construtos humanos valiosos.

Signos de destruição?

O quadro Angelus Novus, de Paul Klee, na análise de Walter Benjamin, apresenta um anjo caído, composto ele mesmo de fragmentos e que, diante da tempestade indefectível do progresso que tende a tudo transformar em ruínas, resta aturdido, porém determinado a reunir esses rescaldos e desenterrar as vítimas de tamanha destruição. Essa é uma maneira poético-filosófica de convocar a crítica à modernidade. Imagem fecunda, infelizmente atual, mantém-se como chamamento...

Vemos hoje arruinados não apenas os marcos físicos, (patrimônios materiais e meio ambiente que literalmente ardem em chamas ou sucumbem sob mares de lama), mas também as conquistas humanitárias que já serviram de suporte civilizacional. Direitos historicamente consolidados, expectativas sociais humanitárias, reconhecimento dos referenciais simbólicos como liame fundamental da vida em comum – tudo isso encontra-se ameaçado de descarte iminente pela dinâmica atual de valorização somente do instante imediato, pelo medo difuso que nos leva ao comportamento intolerante e a conceder nossas liberdades a leviatãs de plantão (de não importa qual estirpe), ou pelo impulso de consumo frenético do que nos é apresentado como encarnação do futuro(?) e da felicidade(!).

Diante disso, diz a letra da música, “eu que aprenda a levitar”.

Levitar, voar? Soa estranho?

Georges Didi-Huberman ensaia com amigos de pensamento a conceituação de Levante, tema de exposição e de incitação filosófica. Levitar pode ser a expressão do levante (como indignação e protesto) e também do elevar-se. Sem prejuízo do primeiro significado, essa última acepção – que nos é mais familiar como educadores, afinal o verbo elevar tem correspondência com educar –, convoca-nos ao voo.

Dédalo e Ícaro, personagens da mitologia, nos ajudam a contornar nossa narrativa. Condenados ao confinamento no labirinto, onde a visão horizontal não oferece saídas, recorrem ao voo para a liberdade transversa. Eis uma forma de levante.

Na chave do voo ou da levitação é que metaforizamos o apelo para assumirmos mais e mais a condição artista, sonhadora, fabuladora, criativa (do pensamento e da ciência) que já cultivamos nas ações educativas do CSD. Eis nosso levante.

Precisamos de asas para isso? Haveremos de inventá-las de algum modo. Precisamos de delicadeza para planar? Há que se exercitar com esforço esse predicado. Precisamos da linguagem para mediar os entendimentos num mundo cada vez mais próximo da Babel? Sejamos mensageiros sutis - como os anjos costumam ser representados.

Anjos? “Não somos a mensagem, mas mensageiros”.

A referência que nos acolhe, entre outras, é Win Wenders em suas obras magistrais Asas do Desejo e Tão longe tão perto. Nelas, os anjos optam por descer ao rés-do-chão e viver como nós, seduzidos pelo poder ordinário: poder amar, poder realizar, poder transformar, poder fazer-se a si mesmo, poder viver o tempo, morrer e ser lembrado. Testados esses poderes, percebem que o curso dos acontecimentos não lhes pertence. Tudo está fora do controle...

Quando o mundano se corrói no limite do suportável, ao estar “sem ter mais onde se segurar”, é hora de lançar-se. Não para alhear-se ou assistir ao desastre, não para proteger-se a si próprio do desabamento, mas para buscar noutras perspectivas, noutras linguagens, noutros ativismos possibilidades de recolher os cacos e produzir novos mosaicos. Com determinação e coragem.

É possível voar sem asas naturais. É possível ser angelical sem auras. Mais que possível, é desejável.

Viver é muito perigoso, não dá é para perder a vontade de ter coragem! – algo próximo do que dizia o romancista em alguma vereda de Grande Sertão.

Para alimentar a coragem, lançamo-nos ao mar com Moby Dick e Ulisses, nos embrenhamos no sertão com Miguilins, penetramos cavernas com trevas e morcegos, navegamos o ar com Peter Pan e sua trupe, aportamos em Ilhas desconhecidas, buscamos saídas dos labirintos com Ariadne, construímos não apenas planetas, mas galáxias, enfrentamos medos e monstros, dentre outras aventuras que requerem ousadia e perspicácia.

Enfrentamos assim o tédio, a arrogância blasé, a insegurança, a indiferença. Tiramos os pés do chão.    

Para partilhar esse percurso chamamos a comunidade do CSD a integrar a Mostra Cultural que ocorrerá em 27 de outubro sob o desígnio Eu que aprenda a levitar.

Sua construção deriva de tudo o que já falamos, mas também da ocupação que fizemos com obras e presença do artista Rubens Matuck no CSD – plenas de mundos imaginários e vidas aladas – e de gravuras de outro artista, Luiz Hermano, que evoca o voo em miscelâneas de mitologias e que nos empresta uma delas para a arte do convite da Mostra.

Com essas matrizes, passamos a promover a confluência dos temas investigados pelos professores e alunos para fazerem parte dos “pousos provisórios” (oficinas e exposições) e labirintos (instalações) com os quais pensamos abrigá-los. Trata-se de curadoria coletiva. Subtraímos assim os temas de seus propósitos originais e criamos novos significados e sentidos para o conjunto. Dessa forma, nós mesmos, envolvidos diariamente com os fazeres planejados e postos em prática, teremos a chance de, ao vê-los de novo, ver o novo.

Essa ação curatorial nos prepara para o voo e para o exercício de permanente reconstrução criativa e produtiva.

Acabou? Ainda não!

Dessa vez, uma família de alunos à frente da companhia circense Nau de Ícaros, ao saber de nossas intenções, nos ofereceu representar no Colégio um espetáculo, parte de seu repertório, chamado ANJOS. O melhor dos agenciadores, o acaso, deu os braços à ocasião.

Como somos enxeridos, propusemos a eles um desafio: a apresentação não da peça original, mas de uma nova composição, na qual interagimos desde a reforma do roteiro até a encenação com participação de alunos.

Rebatizamos a obra: depois de mexida e remexida, a apelidamos de (arr)ANJOS. Com essa apresentação, finalizaremos a Mostra Eu que aprenda a levitar.

Tá bom pra vocês, por ora?!

Começamos agora a preparar programação.

Equipe de Direção